5. Análise Contrastiva entre a Pedagogia Crítica e a Abordagem Comunicativa
Resumo
Este artigo é acerca de uma análise contrastiva entre a Pedagogia Crítica (PC) e a Abordagem Comunicativa (AC). O motivo inicial para desenvolver este estudo partiu do interesse em obter um novo olhar do ensino de modo geral, sendo que a PC é oriunda de uma longa tradição de estudos filosóficos e a AC está voltada para nossa área específica, a Linguística Aplicada. Acredita-se que tendo um novo olhar em mente, se despertará novas ideias que possam elevar a nossa prática em sala de aula. Desde já, o objetivo é examinar a origem e a evolução de ambas, frisar seus conceitos e princípios, e por último, constatar as semelhanças, tudo por meio de leitura de livros que se dirigem ao tema. Após as análises, foi apurado que a PC e a AC são incomparáveis, pois a primeira é apenas uma perspectiva de ensino grosso modo ao passo que a segunda é uma Abordagem (com A maiúsculo) para o ensino de línguas.
Palavras-chave: Pedagogia Crítica, Abordagem Comunicativa, Ensino, Ensino de Línguas.
ABSTRACT
This paper aims at comparing the concepts and principles of Critical Pedagogy (CP) and the Communicative Approach (CA). It is due to our desire to get a better understanding of what teaching is inside the classroom. Looking at these aspects from a different perspective will give us new ideas in terms of teaching on a whole. After reading several books that address the theme, we organized the article based on the following scheme: the origin, development and principles of CP; those of the CA; and finally a synthesis of both aspects. According to the findings, CP and the CA cannot be compared on the same level as the first is merely a view of teaching, whereas the latter is a specific Approach regarding language teaching.
Keywords: Critical Pedagogy, Communicative Approach, Teaching, Language Teaching.
Introdução
De modo geral, a Pedagogia Crítica (doravante, PC) e a Abordagem Comunicativa (AC) são dois aspectos que dirigem-se ao processo de ensino. A PC refere-se a uma teoria educacional e às práticas de ensino e aprendizagem que são projetadas para aumentar a consciência crítica dos alunos em relação às condições sociais opressivas. Além de seu foco na libertação individual mediante o desenvolvimento da consciência crítica, ela aborda uma dimensão política, posicionando tal consciência como o primeiro passo necessário para desafiar e transformar as condições sociais opressivas e criar uma sociedade mais igualitária (GIROUX, 1986). A AC, por sua vez, trata de um conjunto de conhecimentos que orientam o ensino comunicativo de línguas. Diferente da Abordagem Gramatical, ela descentraliza a gramática e organiza os sentidos comunicativos (ALMEIDA FILHO, 2008).
Por meio da análise contrastiva entre a PC e a AC proposta aqui, pretendemos trazer uma reflexão maior acerca da prática do professor de línguas.
A Pedagogia Crítica (PC)
A PC originou-se no final da década de 1930 da teoria crítica da Escola de Frankfurt na Alemanha, a partir de estudos sobre: a dialética do iluminismo de Max Horkheimer (1885-1973), Theodor W. Adorno (1903-1969) e Leo Lowenthal (1990-1993); o marxisimo e o socialismo de Herbert Marcuse (1898-1979); o marixismo humanista e a hegemonia de Antonio Gramsci (1891-1937) e Raymond Williams (1921); a teoria de atos de fala, a hermêutica, e a psicanálise de Jugen Habermas (1921-); entre outros. A escola teve grande influência também das obras do educador e teórico brasileiro Paulo Freire (1921-1997), relacionadas à humanização e à educação libertadora.
Na pós-modernidade, estudiosos tais como Henry A. Giroux, Peter McLaren, Douglas Kellner, Carlos Torres, Kris Guiterrez e Michael Apple, têm desenvolvido estudos na área da PC com enfoque em ideologias e poder, cultura e educação pós-moderna. A seguir, discute-se alguns desses conceitos e visões.
Freire (2005) apresenta a concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão, na qual os alunos são vistos como recipientes vazios a serem enchidos pelo professor. Ele aponta que a educação é tradicionalmente concebida como "um ato de depositar, em que os alunos são os depositários e o professor é o depositante" (FREIRE, 2005, 66). Desse modo, o professor ensina e os alunos "recebem, memorizam e repetem" (FREIRE, op.cit). Contudo, o teórico defende que o conhecimento deveria ser socialmente construído por meio de diálogos críticos. Ambos, professores e alunos, deveriam trazer as suas experiências, aprendendo um com o outro na construção de sentidos por meio da abordagem dialógica que favorece a comunicação democrática entre alunos e professores. Por outro lado, o método anti-dialógica posiciona o professor como transmissor de conhecimento, um quadro hierárquico que leva à dominação e opressão pelo silenciamento do conhecimento e experiências dos alunos. Sobretudo, o autor apela para uma educação que busca envolver os alunos na reflexão e resolução de problemas. Da mesma forma, o filósofo e educador estadunidense John Dewey (1915) propõe a educação progressista, que focaliza a reflexão no processo de ensino aprendizagem.
A PC vai além da sala de aula, estudando o papel que as escolas desempenham na manutenção da estratificação social da sociedade. McLaren (1997) e Giroux (1997) acreditam que a escola é uma instituição que perpetua desigualdades por meio de poderes ideológicos e hegemônicos. De acordo com Raymond Williams, “a escola...não controla apenas pessoas, mas conhecimentos também”. Além disso, Apple (1982) explica que a escola age como agente de hegemonia cultural e ideológica, como agente de tradição seletiva e incorporação cultural. Dessa maneira, os agentes se apropriam dos valores da instituição e subsequentemente, ‘fecham as mentes’ para outras visões de mundo.
Gramsci (1978a) explica que a hegemonia caracteriza a capacidade de uma classe ou nação de subordinar intelectualmente as demais classes ou nações por meio da educação, sendo esta entendida em seu sentido amplo. Para conquistar a hegemonia é necessário que a classe (ou nação) fundamental apresente-se às demais como aquela que representa e atende aos interesses e valores de toda sociedade, obtendo o consentimento voluntário e a anuência espontânea, garantindo assim a unidade do bloco social que, embora não seja homogêneo, se mantém, predominantemente, articulado e coeso. Apple (1982) acrescenta que são oferecidos compromissos aos grupos subordinados, os quais pensam que as suas preocupações estão sendo ouvidas, enquanto os grupos dominantes ainda mantêm sua liderança geral de tendências sociais.
A PC reflete sobre como a educação pode proporcionar aos indivíduos as ferramentas para melhorar e fortalecer a democracia, para criar uma sociedade mais igualitária e justa e, assim, implantar a educação em um processo de mudança social progressista. Giroux (1994, p. 30) mostra como as questões de voz, poder e avaliação trabalham ativamente para a construção de relações particulares entre professores e alunos, instituições e sociedades, salas de aula e comunidades. Pedagogia no sentido crítico ilumina a relação entre conhecimento, autoridade e poder.
Educadores críticos buscam capacitar os oprimidos e transformar as condições que perpetuam a injustiça humana e desigualdade (McLaren, 1988). Este objetivo está intrinsecamente ligado à teoria de humanização de Paulo Freire (1970), cujo princípio defende que cada indivíduo deve tornar-se mais plenamente humano, emancipado de opressão. Os oprimidos devem aprender a libertar-se, e por sua vez, os seus opressores também, que são desumanizados através do próprio processo de oprimir os outros.
Por isso, uma das principais funções da PC é criticar, expor e desafiar a maneira pela qual as escolas tem impacto sobre a vida política e cultural dos alunos. Os professores devem reconhecer como as escolas unem conhecimento e poder e como, através dessa função, elas podem trabalhar para influenciar ou impedir a formação de indivíduos que pensam criticamente e que são socialmente ativos. Conscientização nessa esfera significa aprender a perceber as contradições sociais, políticas e econômicas; e desenvolver uma consciência crítica de modo que os indivíduos possam tomar medidas contra os elementos opressivos da realidade.
A PC, portanto, engloba uma elevação da consciência, uma crítica da sociedade; a valorização das vozes de alunos, das suas necessidades e individualidade. Permite que os alunos possam tornar-se membros verdadeiramente participativos da sociedade e não apenas pertencer à sociedade. Outrossim, que sejam indivíduos capazes de fazer, criar e recriar a sociedade.
Passamos, então, para a discussão a respeito da AC.
A Abordagem Comunicativa (AC)
A motivação original de adaptar uma abordagem nocional-funcional (percursora do comunicativismo) de ensino de línguas no início da década 70 deve-se à tentativa de superar as inadequações de existentes currículos estruturais, materiais e métodos que revelaram-se malsucedidos no ensino de inglês para imigrantes na Inglaterra, os quais precisavam aprender a língua para a comunicação (HOWATT, 1984). Houve o financiamento de projetos, tais como o Scope na Universidade de Leeds e o Programme in Linguistics and Teaching na Universidade de Londres, sob a direção de linguistas ingleses que desenvolveram pesquisas na área de ensino de línguas para a comunicação. Como fruto dessas pesquisas, Wilkins apresenta em 1976, uma nomenclatura de funções comunicativas no seu Notional Syllabuses; Widdowson publica Teaching Language as Communication, em 1978, que distingue entre a coesão de textos como objetos linguísticos e a coerência do discurso como comunicação.
A abordagem nocional-funcional desenvolveu-se a partir de 1977 no Brasil, contrapondo o método audiolingual (que adota a abordagem gramatical), por meio dos trabalhos de Almeida Filho, recém-chegado da Universidade de Manchester, onde defendeu sua dissertação de mestrado acercadas bases para um planejamento comunicativo nocional-funcional de um curso de língua. Além da tradução do livro de Widdowson, O Ensino de Línguas para a Comunicação, Almeida Filho publicou Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas(1993) e Linguística Aplicada, Ensino de Línguas e Comunicação (2005), obras tratam diretamente da abordagem comunicativa.
O ensino comunicativo de línguas organiza as experiências de aprender em termos de atividades de real interesse e necessidade do aluno para que ele se capacite a usar a língua-alvo para realizar ações de verdade na interação com outros falantes-usuários dessa língua; não trata-se apenas de enfatizar um tema, mas também criar um universo de sentidos para o aluno (ALMEIDA FILHO, 2008, p. 47).
A Abordagem Comunicativa incorpora conceitos de língua, conceitos de aquisição e aprendizagem e conceitos de ensino de línguas. Conforme Almeida Filho, (2007, p. 64-65)o conceito de língua divide-se em categorias: a língua materna (ou L1), a qualpermite a comunicação ampla, constitui a identidade pessoal, regional, étnica e cultural da pessoa; a segunda língua (ou L2) diz respeito à “língua não materna que se sobrepõe a outra(s) que circula(m) setorialmente ou com restrições”; e a língua estrangeira (ou LE), a qual refere-se a “outra língua em outra cultura de um outro país pela qual se desenvolve um interesse institucionalizado em conhecê-la” (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 64-65).
A partir da década de 80, a AC reconhece que a língua envolve um processo construtivo e emergente de significações e identidade. Portanto, aprender uma língua não é apenas conhecer outro sistema, “nem só passar informações a um interlocutor”, trata-se de construir ações sociais e culturais apropriadas no discurso, por meio de contextos sociais concretos e experiências prévias (ALMEIDA FILHO, 2007, 81). Com base na visão de Kramsch (1998, p. 3), linguista estadunidense, a língua exprime, incorpora e simboliza a realidade cultural. A AC considera importante a questão cultural no ensino de línguas. Ela dirige-se também ao conceito de discurso, compreendo-o como:
uma linguagem com fins específicos e aceitáveis, marcado por diferenças individuais em situações socioculturais reais nas quais o (inter)locutor se depara com a manutenção das relações sociais, conflitos, necessidades de informações e negociações sempre sob o prisma de atitudes, motivações pessoais ou coletivo-culturais. (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 81)
Já Bakhtin prevê na década de 1920 que estudar a linguagem é um ato que deve envolver, necessariamente, os aspectos sociais do uso de uma língua. A realidade fundamental da língua é constituída pela interação verbal-social que se efetua através da comunicação discursiva concreta, e está ligada à situação social imediata e ampla. Portanto, os elementos de discurso, não são “neutros”, mas carregam sentidos e visões de mundo.
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 1993 [1934-1935], p. 86).
Conforme Foucault (apud ALMEIDA FILHO, 2007, p. 81), o discurso refere-se a um conjunto de significados e valores que são exprimidos em uma língua de modo sistemático, dentro de instituições e grupos sociais.Destarte, o uso de linguagem deve ser considerado como ato de comunicação (ALMEIDA FILHO, op.cit).
A partir dos anos 70 a AC incorpora o conceito de competência comunicativa proferido por Hymes (1966) como “um conhecimento de gramática e uma capacidade abstrata para o uso coerente e apropriado da linguagem em situações de interação” (apud ALMEIDA FILHO, 2007, p. 81).
Portanto, o processo de ensino-aprendizagem trata-se de um processo complexo: os alunos têm de aprender culturas, estratégias e estilos diversos,os professores, por sua vez, possuem culturas, estratégias e estilos próprios de ensinar. Sobretudo, o aluno deve saber julgar os sentidos de como está aprendendo para autonomizar-se no aprender a aprender (ALMEIDA FILHO 2007, p. 67).
Por outro lado,os papeis do professor incluem: a diminuição das diferenças de poder entre si e os alunos por meio de um estilo democrático; a orientação de alunos em vez da execução de autoridade máxima; a facilitação de atividades; a busca por atender as necessidades de aprendizagem individuais com estilos diversos; e a formação de alunos que possam aprender com crescente independência (ALMEIDA FILHO 2007, p. 69).
Vale ressaltar que algumas posturas de ações comunicativas incluem (ALMEIDA FILHO, 2007, p. 80):
i. A significação e a relevância dos conteúdos dos textos, diálogos, exercícios para a prática da língua que o aluno reconhece como experiência válida para sua formação e crescimento intelectual;
ii. a utilização de uma nomenclatura comunicativa nova para descrever os conteúdos e os procedimentos que inclua temas, tópicos, recortes comunicativos, funções, cenários, blocos semânticos, papéis sociais e psicológicos;
iii. Tolerância explicita com a função mediadora de apoio da língua materna na aprendizagem de outra língua, incluindo os erros que agora são reconhecidos mais como sinais de crescimento da capacidade de usar a língua-alvo;
iv. Aceitação de exercícios mecânicos de substituição que embasam o uso comunicativo extensivo da língua através da prática interativa significativa;
v. Garantia de condições para a aprendizagem consciente de regularidades linguísticas, especialmente quando solicitados pelo aluno;
vi. Representação de temas e conflitos do universo do aluno em forma de problematizarão e ação dialógica;
vii.Atenção às variáveis afetivas como ansiedade, inibição, empatia pelas culturas dos povos que usam a língua-alvo e o preparo para compreender as diferenças individuais aprendizagem;
viii.Avaliação do progresso ou da proficiência em unidades discursivas reais que o aluno pode de fato realizar.
Segundo Almeida Filho (2007, p. 80),
esses itens mostram uma abordagem (comunicativa) que preocupa-se com o próprio aluno como sujeito e agente no processo de formação através de uma nova língua. Portanto, há menos enfoque no ensino e mais ênfase naquilo que tem sentido para o aluno, que o faz crescer como pessoa e cidadão.
Considerações Finais - Sintetizando a PC e a AC
Com base no que se explicitou em relação à PC e à AC, é evidente que são fenômenos diferentes. Isto é, a AC trata-se de uma abordagem para o ensino de línguas ao passo que a PC é uma perspectiva ou visão de ensino mais amplo.
Entretanto, justifica-se dizer que ambas compartilham algumas visões a respeito de ensino. Em primeiro lugar, valorizam a comunicação democrática entre professor e aluno; o professor não é visto como transmissor de conhecimento, pois tanto ele quanto os alunos trazem conhecimentos para a sala de aula mediante suas experiências e histórias. O professor não representa autoridade, como visto na concepção bancária de Freire (1985); ele conscientemente diminui seu poder e concomitantemente, estimula os alunos a aprenderem com independência e a tornarem-se responsáveis por seu próprio aprendizado.
Além disso, ambas a PC e a AC desconsideram a memorização contínua como forma de aprender. Em vez disso, favorecem a reflexão e resolução de problemas no processo de ensino aprendizagem. Dessa maneira, os alunos são encorajados a desenvolver o raciocínio crítico para agir não apenas na sala de aula, mas na sociedade como um todo. Tanto a PC quanto a AC buscam emancipar o aluno como cidadão da ideologia de que ele não emana conhecimento e que esse pertence a seres superiores. Portanto, na sala de aula, professor e aluno constroem conhecimento de forma democrática por meio de reflexão de ambas partes.
Vale ressaltar que tanto a AC quanto a PC não tem sido implementadas de forma efetiva na sala de aula. O impasse na implantação dos dois fenômenos deve-se a compreensões parciais por parte de professores; a formação precária desses; às tradições e visões antigas de ensino que continuam firmes; a falta de livros didáticos; e a falta de habilidade de professores em dominar teorias de ambas áreas. Há necessidade de desenvolvimento de estudos contínuos em ambas a AC e a PC, que possam ligar as teorias e valores ideais à prática na sala de aula.
Referências
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