Ano 6 - Nº 6 - 1/2012

8. Uma Perspectiva Histórica do Construto “Cultura” no Ensino de Línguas

Resumo
O aspecto cultural como elemento integrante do processo de ensinar e aprender línguas apresenta-se, atualmente, como um truísmo na área da Linguística Aplicada. No entanto, há de se reconhecer que em determinados contextos houve quem se apresentasse considerando os dois elementos de modo separado, a exemplo daqueles que adotam uma perspectiva de ensino que privilegia estruturas linguísticas e dão um tratamento apenas ilustrativo adicional aos aspectos culturais.  Por meio da pesquisa bibliográfica de caráter histórico, este trabalho pretende abordar algumas considerações importantes sobre o construto cultura e sua relação com a língua. Para tal, tomamos como base o texto de referência do linguista aplicado estadunidense Robert Lado (1957) Introdução à Linguística Aplicada.

Palavras-chave: língua e cultura, história do ensino de cultura, ensino de língua-cultura estrangeira.

ABSTRACT

The cultural aspect as a component in language teaching and learning process presents itself as self-evident in Applied Linguistics field nowadays. However, we have to acknowledge that, in specific contexts, there were people who considered these two elements separately, those who adopt a teaching perspective which favors linguistic structures and sees the cultural aspect just as an elucidative extra feature, for instance. Through a historical literature review, this study approaches some important issues about culture and its relation with the language. In order to do so, we based our analysis on the key book Linguistics across culture written by the American applied linguist Robert Lado (1957).

Keywords: language and culture, history of culture teaching, foreign language-culture teaching.

Introdução

Na década de 50 do século passado, o ensino de línguas no Brasil foi marcado por críticas tecidas aos pressupostos teóricos calcados no método direto[1], bem como pelos primeiros passos da base científica da segunda geração dos ditos métodos científicos, a do método audiolingual. Este último, profundamente relacionado ao estruturalismo norte-americano[2], à psicologia behaviorista[3]e à análise contrastiva.

No que tange o período efervescente da análise contrastiva, um representante importante é o linguista aplicado Robert Lado (1915-1995).Seus pais eram espanhois imigrantes que se mudaram de volta para a Espanha antes que ele tivesse a chance de adquirir o inglês. Ele retornou aos Estados Unidos aos 21 anos de idade, e começou a aprender Inglês já adulto. Mais tarde, se formou em Artes e tornou-se professor de Inglês no Instituto da Linguagem, da Universidade de Michigan, na cidade de Ann Arbor.

Em 1957, Lado publicou o livro seminal intitulado Linguistics across culture, emerecedor de uma raratradução no Brasil sob o título Introdução à Linguística Aplicada, o qual dedicou a sua mãe, falante monolíngue de Espanhol. No livro, o autor deixa claro seu objetivo de demonstrar como a comparação entre a língua materna e a língua estrangeira, doravante LE, é o modo mais eficiente de aprender uma língua-alvo.

No panorama teórico da época, no que diz respeito à inter-relação de língua e cultura, notamos que apesar de existir alguma referência à cultura, prevalece o pensamento de que esta tem status separado de língua. Podemos notar desde já que a referência à cultura na obra do autor estadunidense se restringe a informações de teor cultural que não captam ainda com abrangência todas as dimensões do termo culturadefendidos na atualidade,[4]que consideram a língua e cultura como elementos amalgamados, ocupantes do mesmo lugar.

Para Lado (op. cit.), a cultura ocorre por obra do comportamento do homem, revelando a maneira de viver das pessoas, refletindo, em realidade, os “costumes de um povo” (p. 148). Para tanto, cita a obra do linguista Edward Sapir, o qual afirma que “todo comportamento cultural é padronizado”.

Este artigo tem como objetivo conduzir uma análise histórica das posições importantes de Robert Lado sobre o construto cultura e sua relação com a língua no seu livro seminal de 1957, com o intuito de compreender no nascedouro as implicações dessa acepção para o processo de ensino e aprendizagem de línguas na contemporaneidade.

O trabalho está dividido em duas seções. Na primeira parte, apresentamos um breve resgate histórico da construção conceitual do termo cultura, baseando nossos argumentos em autores como Chauí (1986), Abbud (1998) e Moura (2009). Na segunda seção, abordaremos mais especificamente e de modo contrastivo a posição postulada por Lado (1957), em que destacamos seu argumento de que a comparação cultural entre os idiomas permite prever problemas que os aprendizes enfrentarão para aprender uma outra língua.

Dessa maneira, esperamos que este trabalho contribua para o desenvolvimento de pesquisas ligadas à História do ensino e aprendizagem de línguas, na medida em que considera uma posição paradigmática do início do estruturalismo nos anos 50 como ponto de partida para compreensão de nossas percepções teóricas e ações presentes, bem como nos prepara para uma intervenção mais fundamentada em acontecimentos futuros da instrução de novas línguas para comunicação no planeta.

1. Um Breve Histórico do Termo Cultura

Do latim colere, a palavra cultura esteve, até o século XVI, atrelada ao cultivo da terra e o cuidado com os animais. Seu sentido estendia-se, ainda, ao cuidado com deuses: donde culto (Chauí, 1986). A partir da 2ª metade do século XVI em diante, o termo assumiu sentido figurado, significando cultivo do espírito e desenvolvimento da mente.

No século XVIII, de acordo com (Williams, 1976 apud Abbud, 1998, p. 47) o termo cultura articula-se em alguns momentos com o termo civilização. Este, do latim, civis e civitas, que se referia ao civil como homem educado, polido, e à ordem social, surgindo então a expressão “sociedade civil”. Segundo (Abbud, 1998) o termo civilizado se referia originalmente a um processo de tornar-se civilizado. A partir das influências do Iluminismo, os dois termos

cultura e civilização, tornam-se, praticamente, sinônimos, sendo usados em inglês, francês e alemão, associados a um processo de desenvolvimento da barbárie ao estado de refinamento e ordem, isto é, à 'civilização' de Paris e Londres (Abbud, op. Cit.).

No que diz respeito ao ensino de língua francesa, ainda hoje, é comum observar o uso do termo civilização entrelaçado ao termo cultura.

No final do século XVIII e início do século XIX, há uma nova bifurcação em relação ao sentido dos vocábulos. Civilização passa a relacionar-se com boas maneiras e polidez, enquanto o conceito de cultura referencia um processo interior de desenvolvimento humano, estendido ao desenvolvimento das artes, religião, ciência e linguagem. É neste momento também que surge a ideia de cultura erudita e cultura popular, sendo a primeira relacionada ao refinamento de maneiras típicas das classes dominantes, à erudição; e a segunda associada aos conhecimentos não institucionalizados, às manifestações dos saberes mais espontâneos, produzidos pelo povo.

Para os estudos de ensino e aprendizagem de línguas, torna-se relevante compreender outra relação estabelecida nos anos 50 e 60 do século XX, a distinção entre cultura com “C” maiúsculo e cultura com “c” minúsculo. Sobre a questão (Mead, 1973) defende que

cultura com “c” maiúsculo, representa todo o complexo de comportamento tradicional que vem sendo desenvolvido ao longo dos tempos, pela raça humana e é apreendido sucessivamente, permitindo o repassar de conhecimentos de uma geração para outra. Já o termo cultura com “c” minúsculo, menos precisa, pode ser vista como formas de comportamento que são característicos de certa sociedade, certa área ou certo período de tempo, permitindo que um determinado grupo seja identificado por seus traços culturais. (apud Dagios, 2012, p.29)

Essa assertiva, que considera Cultura (aspectos visíveis como literatura, artes, costumes, religião, e outros) e cultura (aspectos invisíveis como léxico e formas de ser, dizer e agir, que são culturalmente marcadas) reforça a ideia de existência de uma superioridade cultural.

Na contemporaneidade, reconhecemos todas as definições mencionadas, e vemos como elas se entrelaçam na história, o que contribui para revelar a complexidade da natureza do termo, não há, entretanto, um consenso para a questão.

Sabendo da natureza polissêmica da palavra, e considerando suas implicações para o ensino de línguas, Kramsch (1998) elenca três definições mais simplificadas do termo cultura que convergem na tentativa de auxiliar o processo de aprendizagem de uma LE: (1) fazer parte de uma comunidade discursiva que compartilha o mesmo espaço social e a mesma história, além de maneiras particulares de perceber, acreditar, avaliar, e agir. (2) a comunidade discursiva em si. (3) as características próprias da comunidade (p. 127).

Neste sentido, nos estudos recentes sobre a cultura no ensino de línguas (Krasmch, 1998; Moran, 2001), sugere-se que, seja a partir da percepção e reflexão das formas simbólicas estabelecidas e partilhadas por uma comunidade linguística e cultural, bem como as diferenças existentes entre os povos, que aconteça a compreensão e interpretação do outro dentro de seu próprio contexto cultural.

2. ACultura sob a Perspectiva da Observação Contrastiva

Como reconhece Lado (op.cit.), no capítulo que dedica ao tema, é árdua a tarefa de discutir cultura e explica que este “é o menos entendido de todos os assuntos discutidos neste volume” (p.148).No entanto, o fato de haver, nesse contexto, uma atenção dispensada aos aspectos culturais, torna-se um tema importante que merece reflexão.

Segundo os preceitos desse autor, o modo mais eficaz de aprender uma língua estrangeira é comparando-a com nossa língua mãe. Lado esclarece que, o aprendiz apresentará dificuldade nos pontos em que a língua materna é diferente da língua estrangeira, e terá facilidade nos pontos de encontro das duas línguas.Ele acredita que o professor que já tiver feito a comparação da LE com a língua nativa saberá melhor quais são os problemas reais da aprendizagem e poderá melhor tomar medidas para ensiná-los (Lado, 1957, p. 15).

O argumento defendido por Lado é que a comparação deve ser feita em todos os âmbitos, do linguístico ao cultural. Ao propor esta ideia de comparação no estudo de LE, o linguista explica que,

o aluno que entra em contato com uma língua estrangeira achará algumas das suas propriedades muito fáceis e outras extremamente difíceis e que os elementos que forem similares à sua língua nativa serão simples para ele e os que forem diferentes serão difíceis”. (Lado, 1957, p. 14-15).

O pressuposto elaborado por Lado apresenta-se como tendo uma coerência inicial, o que for igual será mais fácil de aprender daquilo que for distinto. Contudo, não podemos afirmar, por exemplo, que um falante de português possa aprender mais facilmente o espanhol, visto que as semelhanças entre essas duas línguas poderiam ocasionar confusão, exatamente pelo fato de serem muito parecidas, e que se entretecem todo o tempo.

Como dissemos no início deste texto, para Lado, a cultura reverbera o modo de viver de um povo, ou seja, seus costumes. Ele explica que “em virtude da personalidade humana ter desenvolvido uma diversidade de maneiras de viver (aqui, culturas) constantemente interpretamo-nos inadequadamente uns aos outros através das culturas”. Sendo assim, faz-se necessário “conhecer as diferenças do outro, pois ignorá-las seria fazer um mau julgamento de nossos vizinhos culturais, visto que uma forma de comportamento que para eles tem sentido pode ter outro para nós”. (p. 22)

Lado acrescenta a isto, a ideia de que se contrastamos nossa cultura e soubermos que um item de comportamento tem um sentido diferente na outra cultura, não entenderemos com equívocos. O autor destaca que o resultado disso seria a

oportunidade de entendermos nós mesmos e o que fazemos. Podemos estabelecer hábitos de tolerância genuínos, ao invés de intenções boas, mas ingênuas, que se desmoronam na primeira vez que nosso vizinho cultural fizer algo que é perfeitamente correto em sua cultura, mas estranho ou mal-intencionado na nossa. (p.22)

Não podemos deixar de destacar, observando o trecho acima, o olhar para a diversidade, o que é sem dúvida, para o contexto da época, um fato consideravelmente importante.

Entretanto, no que concerne a relação da língua e cultura no espaço destinado ao ensino de língua estrangeira, vemos dois elementos desvios. Existe uma compartimentalização estrutural da língua e da cultura. O próprio modo de organização do livro de Lado evidencia esta característica; em cada um dos capítulos nos é oferecido o modo como devemos comparar as línguas, contrastando os sistemas de som, estruturas gramaticais, vocabulário, escrita e, por fim, a comparação de duas culturas. Todos estes elementos são tratados sem haver qualquer inter-relação traçada pelo autor.

Sob o ponto de vista de Lado, o aprendiz de uma língua precisa, em realidade, apreender dados sobre a cultura para evitar um julgamento precipitado, como por exemplo, um americano não compreender o sentido real da tourada para um espanhol e a interpretar de maneira distorcida. No que se refere à real relevância da cultura na aprendizagem de uma LE, não fica explícito como a primeira contribui para a comunicação. O que não causa total estranhamento, visto que como já mencionamos, faz parte de sua natureza estruturalista.

Considerações Finais

Com o avanço das pesquisas linguísticas, dá-se a impressão de que existe um consenso no que tange à concepção de língua como sendo complementar à de cultura. No entanto, ao fazer uma observação histórica dessa concepção, notamos que língua e cultura aparecem, muitas vezes, como elementos desvinculados.

Verificamos que apesar de existir um lugar dispensado ao tema, como visto nos estudos desenvolvidos por Robert Lado, a ênfase é dada nas associações e comparações de elementos entre culturas. Não havendo, portanto, relação clara construída sob a perspectiva de interdependência.

Ainda que norteamentos teóricos recentes, como os de Kramsch (1993), expliquem que deve existir mais que apresentação e comparação dos padrões culturais próprios do aprendiz e da língua-alvo, os resquícios históricos respaldam a ênfase nos aspectos estruturais da língua, que por sua vez, perduram em muitos espaços de ensino e aprendizagem. Estes espaços, por sua vez, refutam o destaque dado às estruturas linguísticas, bem como ao fato de que, aos aspectos culturais é reservado um lugar como pano de fundo no ensino de línguas estrangeiras. Acreditamos que as reflexões sobre língua-cultura reverberam na aprendizagem e ensino de línguas, uma vez que contribuem para a construção de uma consciência individual do aprendiz, permitem notar que o valor cultural de um povo não pode ser mensurado em detrimento de outro, e principalmente que aprender uma língua estrangeira é, pois, aprender a comunicar-se dentro de uma cultura.

Referências

  • ABBUD, S. Cultura, culturas e ensino de línguas estrangeiras. Revista interfaces, Rio de Janeiro, ano 4, n. 5, p. 45-56, out. 1998.
  • DAGIOS, M. G. As concepções de interculturalidade e suas aplicações no ensino de língua inglesa: uma análise da visão dos professores do sudoeste do Paraná . In Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada da ALAB, 9, 2011, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada/Formação de professores. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Disponível em <http://www.alab.org.br/pt/eventos/ix-cbla/129>. Acesso em: 23 de jun. 2012.
  • KRAMSCH, C. Language and culture. Oxford: Oxford University Press, 1998.
  • _________. Context and Culture in Language Teaching. New York: Oxford University Press, 1993.
  • LADO, Robert. Introdução à linguística aplicada. Petrópolis:Vozes, 1971.
  • MORAN, P. R. Teaching Culture – Perspectives in Practice.1. ed. Boston: Heinle & Heinle, 2001.


[1]
 Os princípios básicos do Método Direto propunham o ensino da língua através da conversação e discussão sem a explicitação de regras gramaticais ou o uso da língua materna do aluno. De acordo com Richards e Rodgers (1986), os princípios do Método Direto explicam que a aprendizagem deve ocorrer exclusivamente na língua estrangeira aprendida, a gramática deve ser aprendida de forma indutiva e vocabulário concreto ensinado por meio de objetos, demonstração e desenhos; enquanto o abstrato era ensinado por meio de associação de ideias.

[2] [2] O estruturalismo americano defende o ensino de línguas com ênfase no ensino da língua falada em contraponto ao ensino da tradução.

[3] [3] A psicologia behaviorista é essencialmente antimentalista e considera o ser humano como um repertório de comportamentos, entre eles o linguístico.

[4] Kramsch (1989), Fantini (1995), Agar (2002), Byram & Morgan (1993).