Ano 4 - Nº 4 - 1/2010

4. A Presença Britânica e a Língua Inglesa na Corte de D. João

RESUMO:
Este artigo visa a apresentar aspectos da presença britânica no Brasil no início do século XIX, com ênfase no ensino da língua inglesa. Primeiramente, descrevemos o contexto em que foi promulgada a lei que criou as primeiras cadeiras de língua inglesa e francesa no Brasil. Em seguida, analisamos anúncios de ensino da língua inglesa na Gazeta do Rio de Janeiro, o que nos permitiu conhecer formas encontradas pela sociedade brasileira de lidar com a presença da língua inglesa em seu cotidiano.

Palavras-chave:Presença Britânica; Língua Inglesa; Século XIX

ABSTRACT: The aim of this paper is to present traits of the British presence in Brazil in the beginning of the nineteenth century, focusing on the English language teaching. First, we described the historical context in which the law that officialized the English and French languages as school subjects in Brazil was introduced. Next, we analyzed English language teaching advertisements in the periodic “Gazeta do Rio de Janeiro”, which allowed us to understand the means Brazilian society found to deal with the presence of the English language in its daily life.

Key-words:British Presence; English Language; Nineteenth Century

 

 

1. Introdução

Gilberto Freyre, em sua obra Ingleses no Brasil, define as relações entre a Grã-Bretanha e o Brasil ainda semi-colonial como "mais ou menos imperiais". Neste artigo, examinamos aspectos das relações políticas refletidas nas relações sociais, a fim de compreender o lugar da língua inglesa no Brasil no início do século XIX.

A transferência da Corte Real Portuguesa para o Brasil, em 1808, sob a égide da esquadra britânica, mudou os rumos da nossa história e provocou repercussões duradouras. D. João, atingido pelos “azares da luta entre a Grã-Bretanha e a França de Napoleão”, trouxe consigo a influência britânica. O século XIX foi, sobretudo na sua primeira metade, “o século inglês por excelência”:  

Da velha metrópole transferia-se para o Brasil a presença inglesa. As necessidades do governo português, primeiro, e depois os problemas iniciais do Brasil independente, favoreceram a posição dos ingleses, que souberam aproveitar as circunstâncias para defender seus interesses, sobretudo comerciais. (PANTALEÃO, 2004, p.64)

O Príncipe Regente D. João determinou a abertura dos portos brasileiros ao comércio estrangeiro, particularmente à Inglaterra [1], fortalecendo a aliança já estabelecida desde o Tratado de Methuen, em 1703, cujas ações manifestavam “sempre as mais incontrastaveis provas de amizade e affecto correspondente à antiga alliança subsistente entre ambas as Corôas”, nas palavras do próprio D. João (CLIB [1808] 1891) [2]. Freyre (2000, p. 84) chegou a afirmar que em virtude dos acordos, “Portugal reduziu-se a uma quase colônia britânica”.

Da mesma maneira que se estabelecia o predomínio britânico no comércio brasileiro, exercia-se uma influência grande da Grã-Bretanha na vida política da Corte, na orientação da linha de conduta do governo. De acordo com Pallares-Burke (2000), “a influência britânica sobre o Brasil do século XIX foi tão marcante que se dizia que estava londonizando nossa terra”. Tais palavras encontram respaldo em Freyre (2000):

A presença da cultura britânica no desenvolvimento do Brasil, no espaço, na paisagem, no conjunto da civilização do Brasil, é das que não podem – ou não devem? – ser ignoradas pelo brasileiro interessado na compreensão e na interpretação do Brasil. (p. 46)

Segundo esse autor, a preponderância econômica dos britânicos não poderia deixar de transbordar, como transbordou, noutras esferas de influência: um conjunto de influências culturais de toda espécie, tanto imaterial como material: no mercado, nos investimentos em títulos de empréstimo do governo, em companhias mineiras, em estradas de ferro, nos costumes de moradia, na moda, nos móveis e objetos das casas. Surgiram as carruagens, os machados e serras inglesas. Além disso, houve a influência intelectual, através dos seus livros em prosa ou verso, dos novos métodos de ensino como o de Lancaster, dos livros técnicos e científicos, traduzidos no desejo de aproximação dos grandes mestres da Literatura Inglesa como Byron, Scott, Swift, Dickens, Doyle, entre outros.

À influência do mister pode-se atribuir a introdução do chá, da cerveja e do whisky, do beef, do pijama de dormir, do rifle esportivo, do water-closet, dos métodos de ensino de meninos, do gosto pelos romances policiais, dos piqueniques, da louça inglesa, do sandwich, das maneiras do gentleman, do passeio a pé, do bar, do drink gelado, do clube, da moda inglesa de roupa de homem, de gravata e de meia, da calça de flanela, do chapéu inglês (redondo), do cachimbo inglês, da governanta inglesa, da hora inglesa (exata), da palavra de inglês (palavra de honra), do breakfast, do sal-de-frutas, do poker, do cavalo inglês de corrida, do buldogue, das corridas de jockey, das viagens nos vapores ingleses, da Brazilian Street Railway (estrada de ferro) e muitos outros.

Não apenas das benesses estrangeiras desfrutava o Brasil inglês. Freyre (2000, p. 65) relata também a repulsa brasileira aos abusos do imperialismo britânico, particularmente em nossos mares, expressa em uma cantiga de autor anônimo, cantada pelos moleques brasileiros enfurecidos pelo invasor, enquanto corriam atrás dos “misters”: “não se pesca mai de rede, não se pode mai pescá, que já sube da nutiça, que os ingrês comprou o má”.   

 

2. Ainstitucionalização das línguas vivas

Foi nesse contexto de conflitos políticos entre Portugal e França e de relações políticas, econômicas, culturais e comerciais com a Inglaterra que o ensino das línguas vivas foi regulamentado no Brasil (VIDOTTI, 2010). Por meio da Decisão nº 29, de 14 de julho de 1809, foram criadas as primeiras cadeiras de inglês e francês no Rio de Janeiro:

E sendooutrossim tão geral, e notoriamente conhecida a necessidade, e utilidade das línguas franceza e ingleza, como aquellas que entre as linguas vivas teem o mais distinto logar, é de muito grande utilidade ao Estado, para augmento, e prosperidade da instrucção pública, que se crêe nesta capital uma cadeira de lingua franceza, e outra de ingleza (CLIB [1809] 1891)

A principal utilidade do conhecimento dessas línguas estaria em possibilitar o acesso ao conhecimento científico da época, em virtude da necessidade de ler os livros didáticos (ou Compêndios), que estavam escritos, em sua maioria, em inglês ou francês (OLIVEIRA, 2006, p. 37).

Todavia, após a promulgação da Decisão nº 29, o ensino da língua inglesa parece ter tido dificuldade de implementação no Brasil, pelo menos até 1837, quando da sua inclusão no currículo do recém-criado Colégio Pedro II e de solidificação na Instrução Pública Secundária, depreendido das sucessivas reformas educacionais, mais precisamente na segunda metade do século XIX, mesmo em um período de relações políticas e atividades comerciais e econômicas majoritariamente com a Inglaterra, cuja influência sobre o Brasil, nessas áreas, permaneceu por décadas.

O hiato entre a criação das cadeiras de inglês e francês e a sua inserção no currículo do Colégio Pedro II, em 1837, nos levaram a indagar acerca de outras formas de ensino dessas línguas dentro do contexto já descrito. De que forma a sociedade brasileira lidava com a língua inglesa no cotidiano frente às relações sociais e comerciais que iam se estabelecendo com os ingleses?

 

3. O ensino informal de inglês

De acordo com Freyre (2000, p. 273), a língua inglesa seria muito útil no dia a dia da sociedade no início do século XIX, em virtude dessas relações, o que nos sugere que a língua inglesa passara a ter uma expressiva finalidade utilitária no cotidiano brasileiro. Anúncios de jornal ofereciam “lugares de auxiliares ou caixeiros a rapazinhos brazileiros em casas de comercio” ou “um bom caixeiro para huma casa Ingleza”. Até mesmo D. Pedro I aprendera “um vocabulário da língua de Shakespeare” com seu groom (cuidador de cavalos).  

Encontramos alguns registros no jornal de maior circulação do país, cujos anúncios divulgavam aulas em “casas de educação” e alardeavam o fato de os professores serem ingleses. Passamos a apresentar ocorrências de ensino informal da língua inglesa, com base em anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro [3].

Segundo Haidar (1972, p. 231), a instrução para meninas restringia-se ao ensino elementar ou “de primeiras letras”, que previa somente noções de aritmética e das prendas domésticas. No entanto, encontramos em Freyre (2000, p. 266) a reprodução de alguns registros da Gazeta do Rio de Janeiro de 1809 de ofertas de aulas de inglês para meninas: “Na Rua dos Ourives n.º 27 mora huma Ingleza com casa de educação para meninas que queirão aprender a ler, escrever, contar e falar Inglez e Portuguez, cozer, bordar, etc.”.

Podemos depreender do anúncio que a língua inglesa, ao lado da portuguesa, ocupava um lugar na formação integral das meninas, distanciando-se do caráter meramente instrumental atribuído ao ensino preparatório para os cursos superiores, que privilegiava os meninos.

Freyre (2000) salienta a ousadia das professoras inglesas ao se oferecerem para ensinar inglês às meninas do Rio de Janeiro, como nesse anúncio veiculado anos mais tarde na Gazeta do Rio de Janeiro, divulgando um verdadeiro colégio:

D.Catharina Jacobtoma a liberdade de fazer sciente ao Publico, que ella tem estabelecido huma Academia para instrucção de Meninas na rua da Lapa, defronte da Ex.ma Duqueza, em que ensinará a lêr, escrever, e fallar as línguas Portugueza, e Ingleza grammaticalmente; toda a qualidade de costura e bordar, e o manejo da Caza. [grifo no original] (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 1813, p.4)

Observamos uma característica comum aos professores: a do falante nativo, cuja importância é ressaltada no seguinte anúncio veiculado na Gazeta em 23 de agosto de 1809:  

Quem quizer aprender a Lingua Ingleza grammaticalmente com perfeição em pouco tempo, ha de fallar com Francisco Ignacio da Silva na casa de Café na rua Direita, o qual há de entregar hum bilhete com o nome do Mestre, natural de Londres [grifo no original] (p. 4)

A primazia da nacionalidade do professor sobre sua identidade parece alçá-lo a um ideal de língua a ser alcançado, conferindo-lhe um lugar de verdade. Seu domínio sobre a língua revela-se na promessa de rapidez e perfeição, que funcionam como uma espécie de chamariz, coadjuvantes na tarefa de fisgar o interessado em aprender a língua “grammaticalmente”.

Notamos também a partir dessa perspectiva, que o falar corretamente (gramaticalmente) configura-se como o alvo a ser alcançado, procurando legitimar o lugar do professor nativo como aquele que domina a língua que ensina, pois tem controle sobre o aprender do aluno.  

 

4. Considerações finais

A busca de fontes históricas e sua análise, além de contribuírem para “ampliarmos o horizonte de compreensão diacrônica da evolução do ensino profissional de línguas no país” (ALMEIDA FILHO, 2003, p. 32), em muito contribuem para uma leitura das relações políticas e econômicas refletidas nas práticas sociais. Os anúncios de jornal relativos ao ensino da língua inglesa deixam entrever aspectos relacionados à cultura de uma época e constituem um observatório privilegiado de um povo, suas crenças e concepções.

Sob a regência de D. João, “os jornais se enchem de anúncios de professores de francês e de inglês”, conforme relata Freyre (2000, p. 266). Anúncios em outros jornais permearam todo o século, todavia, sua análise foge ao escopo deste estudo, o que aventa para novos trabalhos, “na compreensão de que conhecer num presente consciente a história passada abre caminhos promissores para planejar o futuro do Ensino das Línguas no Brasil como profissão e como área de estudos e pesquisa” (ALMEIDA FILHO, 2010).

 

 

Referências

ALMEIDA FILHO, José Carlos P. História do Ensino de Línguas no Brasil. HELB - Linha do tempo sobre a história do ensino de línguas no Brasil. Início. Disponível em: <http://www.helb.org.br> Acesso em: 12 jun. 2010.

ALMEIDA FILHO, José Carlos P. ‘Ontem e hoje no ensino de línguas no Brasil’. In: Stevens & Cunha (orgs.). Caminhos e Colheita: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. 

BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1891.

_______. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1809. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1891.

FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda. 2000.

GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Avisos. Rio de Janeiro, 23 ago. 1809. Disponível em:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta_rj_1809/gazeta_rj_1809_099.pdf> Acesso em: 12 jun. 2010.

GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Avisos. Rio de Janeiro, 06 jan. 1813. Disponível em:<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta_rj_1813/gazeta_rj_1813_002.pdf> Acesso em: 12 jun. 2010.

HAIDAR, Maria. O Ensino Secundário no Império Brasileiro. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1972.

OLIVEIRA, Luiz E.M. A instituição do ensino das línguas vivas no Brasil: o caso da língua inglesa (1809-1890). Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo-SP, 2006.

PALLARES-BURKE, Maria. [Orelha do livro]. In: FREYRE, G. Ingleses no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda. 2000.

PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa. In: HOLLANDA, Sérgio. B. (org.).  História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico – O Processo de Emancipação. 11ed., v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Editora Bertrand do Brasil. 2004. p. 64-99.

VIDOTTI, Joselita J.V. ‘Há 200 Anos: Representações Sobre o Ensino da Língua Inglesa no Brasil’. In: Revista CONTEXTURAS: ensino crítico de língua inglesa, v. 16. São Paulo: APLIESP. 2010.

 

 

1. Usaremos os termos ingleses e britânicos como equivalentes, assim como Inglaterra e Grã-Bretanha pelo costume generalizado e pelo fato de que, em documentos oficiais ingleses da época, empregava-se muitas vezes a palavra Inglaterra para designar o Reino Unido da Grã-Bretanha (PANTALEÃO, 2004, p. 64).

2. O ano entre colchetes é o da promulgação da lei e o ano da obra citada permanece entre parênteses.

3. A Gazeta do Rio de Janeiro, fundada em 10 de setembro de 1808, foi o primeiro jornal impresso no Brasil, nas máquinas da Imprensa Régia, no Rio de Janeiro e circulou durante todo o período joanino (1808-1821). Os anúncios aqui reproduzidos podem ser lidos na íntegra em  http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta.htm Acesso em: 12 jun. 2010.