Ano 9 - Nº 9 - 1/2015

Linguagem e Matemática em cartas: trabalhando na EJA

Introdução: colocação do problema

Receber e enviar correspondências faz parte do nosso cotidiano. De contas a propagandas, ou mesmo de cartas de vendas de cartão de crédito, por exemplo, diariamente colecionamos considerável remessa postada por correio.

Em meio ao mundo conectado pela internet, é necessário que o alunado da EJA identifique o tipo de correspondência, reconheça sua função e interprete com proficiência seu conteúdo. Isso equivale a dizer que a agenda de ensino em EJA tem que incluir, no trabalho da lecto escrita, os diferentes gêneros e tipos textuais para atingir o letramento pleno.

Segundo Swales (2006), os gêneros são dinâmicos e surgem em função das necessidades dos grupos. Marcuschi&Xavier(2004) e Marcuschi(2008) fazem uma distinção entre gêneros emergentes e gêneros consolidados. Compreendendo-se como gênero já fixado, as cartas fizeram e continuam fazendo parte da vida contemporânea, ainda que estejamos vivendo uma era digital em que predominam as interações online com abundância de gêneros emergentes.

A população que compõe o corpo discente da EJA, no entanto, ainda apresenta pouco letramento digital. Costuma, pois, lançar mão das cartas para interagir em geral com familiares, embora utilize também a comunicação por telefonia.

O desafio que se impõe então é o de instrumentalizar os alunos da EJA para que conheçam e reconheçam a forma composicional padronizada de uma carta, seus diferentes tipos e funções (Paredes Silva, 1998), além de inseri-lo no mundo digital implementando o multiletramento, nos termos de Pacheco (1010).

Ao levar esse gênero para sala de aula, através de estratégias específicas de mediação de leitura do gênero carta (de pedido, reclamação, saudação, por exemplo), as ações pedagógicas, antes intuitivas, tornam-se conscientes e tecnicamente aplicáveis para as demandas da aprendizagem da linguagem formal, seja na Língua Materna, seja na Matemática.

Objetivos

Neste texto, apresentamos os primeiros resultados de pesquisa desenvolvida no âmbito de dois Projetos EJA, vinculados à Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ e a turmas de EJA da Rede Municipal de Ensino. Subsidiar o trabalho de leitura com cartas, oferecendo indicadores metacognitivos como base na interação entre professor e aprendente sob perspectiva interdisciplinar nas áreas de Português e de Matemática, nos termos de Leal&Mollica (2009; 2010) constitui o subproduto das investigações empreendidas.

A leitura pressupõe a decodificação do que lemos e a habilidade de extrair significado explícito e implícito de um texto escrito. Ultrapassada a fase da decodificação, deseja-se atingir o estágio inferencial em que o leitor é capaz de compreender o que lê em contextos para construir os significados.

No desenvolvimento da construção de significados, muitas vezes são exigidas operações e estratégias de pensamento que dependem da capacidade do aprendiz de abstrair, processo esse que vai além do conhecimento de conteúdos da Língua Materna e de Matemática.

Segundo Paulo Freire e os ditames dos PCN, não se pode negar a significativa importância dos conhecimentos prévios na compreensão de novos conteúdos: quanto mais informação, mais compreensão. Assim, alargar o conhecimento enciclopédico é meta fundamental numa pedagogia de leitura.

Estratégias de mediação como procedimento pedagógico de leitura.

Dentre os dispositivos pedagógicos de que dispomos no ensino de leitura, a mediação se apresenta como eficaz. Durante o processo de mediação, o professor deve buscar em relação à  Língua Materna e à Matemática:

  • Identificar o tema do texto.
  • Explicitar pouco a pouco o contexto, alargando o conhecimento enciclopédico do aprendiz.
  • Oferecer pistas e direcionar a construção de ideias.
  • Dar maior legibilidade aos textos quando os alunos o consideram muito opaco.
  • Descrever ou inferir o sentido de uma palavra.
  • Inferir uma informação implícita.
  • Interpretar o texto com auxílio de ilustrações quando necessário.
  • Criar uma pergunta a ser respondida e/ou um problema parecido envolvendo a vida cotidiana do aprendiz a partir do problema dado;
  • Formular um problema relacionado com as experiências de vida dos aprendentes a partir de uma pergunta.
  • Utilizar os “erros” cometidos pelos estudantes como diagnóstico das dificuldades de aprendizagem.
  • Estimular a conversão da expressão oral em ideias numericas, quando for o caso.

Defendemos, então, que é crucial que qualquer intervenção no processo de ensinagem deve pressupor a importância de se desenvolver Pedagogia planejada segundo critérios claros e de acordo com as necessidades do anulado, já que temos claros os seguintes pressupostos na Educação de Jovens e Adultos.

q  A leitura de textos em contextos de resolução de problemas de Matemática é de difícil decodificação para aqueles que possuem pouca experiência na cultura letrada, dado que se supõem habilidades escolares específicas.

q  Ao leitor, não basta conhecimento de mundo para que ocorra uma leitura produtiva.

q  Faz-se primordial a intermediação de um professor que, no processo de leitura, crie meios para que os alunos se envolvam ativamente.

Experimento.

Foram testados 53 alunos de duas turmas do PEJA II de uma Escola Municipal localizada na Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro. O perfil dos alunos se caracteriza como se segue:

Turma 1

Bloco I (6º e 7º ano do Ensino Fundamental)

Total de alunos testados: 22

Idade Média: 16 anos

Turma 2

Bloco II (8º e 9º ano do Ensino Fundamental)

Total de alunos testados: 31

Idade Média: 17,6 anos

Do ponto de vista metodológico, a testagem se deu através de mediação, utilizando-se o princípio de andaimes. A estratégia consiste em utilizar um membro mais experiente do grupo para facilitar a compreensão da leitura para o leitor iniciante. As mediadoras foram uma Professora de Português da turma e uma mestranda da UFRJ.

A professora da turma, auxiliada pela mestranda, distribuiu o texto (carta) e uma folha em branco para que os alunos registrassem a turma e a idade e respondessem a 6 perguntas após a leitura do texto.

Texto apresentado:

Rio de Janeiro, 25 de junho de 2013

Querida Mariana.

Como você está? Já se acostumou com a nova vizinhança? Temos que colocar as fofocas em dia.

Eu estou muito feliz. Voltei a trabalhar. Estou vendendo roupas em uma feirinha perto da sua casa. Tenho que pagar para o dono da feira 10% do valor de tudo que eu vender. Ontem eu vendi:

3 blusas de R$ 20,00 cada;

2 bermudas de R$ 25,00 cada;

1 casaco de R$ 40,00.

O dono da feira me disse que eu deveria pagar R$ 20,00. Este valor está certo? Estou perguntando porque você sempre me ajudou com os números.

Se o valor estiver errado, vou conversar com o feirante. Estou esperando sua resposta.

Sinto saudades de quando você morava aqui perto.

Beijos.

Rita.

Os alunos preferiram realizar uma leitura silenciosa e, após a leitura, foram lançadas as seguintes perguntas:

1)      Trata-se de que tipo de texto?

2)      Quem receberá o texto?

3)      Quem escreveu o texto?

4)      A pessoa que escreveu o texto estava aonde? E quando ela o escreveu?

5)      O que Mariana precisa saber para ajudar a Rita?

6)      Vamos responder para Rita, seguindo o esquema que está no quadro?


Resultados.

Obtivemos os seguintes resultados mediante às perguntas. Observem-se os quantitativos no quadro a seguir:

 

Respostas Corretas (*)

 

 

Bloco I

Bloco II

Pergunta 1

(Tipo de Texto)

7

(30%)

2

(6%)

Pergunta 2

(Quem receberá)

22

(100%)

17

(55%)

Pergunta 3

(Quem escreveu)

22

(100%)

17

(55%)

Pergunta 4

(Data e local)

9

(40%)

7

(22%)

Pergunta 5

(Qual a ajuda solicitada)

 

14

(63%)

 

4

(12%)

              (*) Percentuais calculados com arredondamento sem casa decimal

Algumas respostas nos chamam a atenção em especial.

Em relação à Pergunta 1 (tipo de texto)

Destaquem-se algumas respostas dos alunos do Bloco I: “Propaganda de venda”; “Sobre uma matéria de Matemática”. Dos sujeitos do Bloco II, 5 alunos responderam “Matemática” e  2 alunos responderam “venda” , “Diálogo”; “Conversa entre amigas”

Em relação à Pergunta 4 (Data e local),:

É digno de nota respostas dos alunos do Bloco I e Bloco II: “do lugar em que está morando” ; “ do trabalho” ;“da feirinha” ; “de casa”.

Em relação à Pergunta 6:

1 aluno do Bloco II copiou o texto dado.

 Em relação ao cálculo dos 10% do valor total:

Do Bloco I, os resultados atestam que somente 3 alunos determinaram o valor corretamente, sendo que dois utilizaram o cálculo mental e um apenas registrou  operações efetuadas em conformidade com a linguagem matemática formal e convencionada, habilidade exigida no letramento escolar.

Note-se que 5 alunos entenderam que deveriam calcular somente o valor total da venda, sendo que apenas 3 determinaram corretamente o valor. Examinem-se algumas soluções:

Ø  150 – 10% = 140 reais

Ø  3 blusas 6%

2 bermudas 5%

1 casaco 4%

Total de 15 reais

Do Bloco II, o experimento mostra que nenhum aluno determinou corretamente o valor dos 10% do total da venda, como se observa nos trechos:

Ø  “3 blusas vai dá 30,00, 2 bermudas vai dá 20,00 e 1 casaco vai dá 10,00. O resto é seu”

Ø  “Dá para ele R$ 80,00 reais e não R$ 20,00 conversa e diz que é 80,00 reais que é menos do que ele qué”

Em relação à escrita da carta resposta, são os seguintes os quantitativos: apenas 11 alunos do Bloco I e 9 alunos do Bloco II respeitaram a tipografia da carta apresentada pela mediadora. Isso nos leva a pensar que a escrita dos aprendizes descarta, em geral, formatações, regras, mesmo em se tratando do gênero carta, supostamente conhecido e muito utilizado pelo público alvo.

Considerações finais.

A pesquisa descrita resumidamente neste texto envolveu os aspetos que identificam o gênero carta aliando o desenvolvimento da lecto-escrita e o processamento de cálculo. A inovação do experimento consistiu em lançar mão da mediação como estratégia de ativar conhecimentos metagonitivos na leitura e no processamento de procedimentos matemáticos.

Os dados obtidos (respostas dos alunos) apontam que a escolha da orientação do estudo é adequada pois: (a) os alunos se mostram aquém do nível desejado do letramento escolar em Língua Materna e em Matemática: (b) é muito baixo o reconhecimento do gênero trabalhado ainda que a população em fase de aprendizagem lide com cartas mesmo numa era em que as competências tecnológicas também vêm se tornando indispensáveis.

Ainda não se pode afirmar se o gênero interferiu no desempenho das habilidades de linguagem e matemática. No entanto, os conhecimentos adquiridos anteriormente na escola, possivelmente, contribuiram para o baixo desempenho dos alunos.

Os resultados obtidos no estudo corroboram com a constatação feita pelo último Pnad – Pesquisa de Amostra de Domicílio (resultados divulgados em setembro de 2013): aumento na taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais. Tal fato nos conduz a pensar que, a despeito dos esforços envidados em Programas como EJA, há que se reforçar, na implementação de políticas públicas em Educação não somente recursos irrestritos, mas, principalmente, uma boa qualificação do profissional.

Referências

  • LEAL,M; MOLLICA, M. C. Construindo o capital formal das linguagens. Curitiba: Editora CRV, 2010.
  • LEAL,M; MOLLICA, M. C. Letramento em EJA. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
  • PACHECO, D. G. Multiletramento digital: práticas de leitura e escrita no século XXI. ReviSta, vol.5-n.2, 2009, pp. 38-61.
  • PAREDES  SILVA, V. Cartas. Tese de doutorado. UFRJ, 1998.
  • MARCUSCHI, L. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Rio de Janeiro: Parábola Editorial, 2010.
  • ________; XAVIR, A. C. Hipertextos e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
  • SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.(The Cambridge Applied Linguistics Series)