Ano 9 - Nº 9 - 1/2015

HISTÓRIA ORAL E PRÁTICAS DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: TESTEMUNHOS PESSOAIS COMO FONTES PRIMÁRIAS PARA UMA SOCIOLINGUÍSTICA HISTÓRICA

RESUMO: Norma e normatização linguística no ensino de gramática em escolas brasileiras. Adaptação da metodologia da História Oral nos estudos sobre o ensino de língua portuguesa.

ABSTRACT: Standard and linguistic standardization in grammar teaching in Brazilian schools. Adaptation of the Oral History methodology in studies on Portuguese language teaching.Proposal through interviews.

1. Entrando na questão.

A questão da construção da norma culta no Brasil e a de sua relação com a normatividade predicada na escola, especialmente baseada em gramáticas qualificadas como tradicionais, têm sido, geralmente, abordadas pelo viés da luta contra a promoção do preconceito linguístico a falares vernáculos sob o rótulo de populares. Seja em relação aos padrões objetivamente verificados na frequência de usos linguísticos de pessoas identificadas como cultas em corpora organizados na década de 80 do século XX, no Brasil,[1] seja em relação à normatização de padrões prescritos no ensino gramatical na escola, um ponto de contato do debate científico sobre objetos de estudo distintos como esses era atender à demanda acadêmica de combater a criação de mitos sobre a língua portuguesa, especialmente em torno de uma suposta pureza linguística do português europeu.

Dentre eles, por exemplo, a crença de que a língua portuguesa transplantada de Portugal a partir do século XVI somente tivesse se modificado no Brasil, sendo, portanto, qualquer uso contrastivo entre Brasil e Portugal um caso de mudança em terras coloniais. Então, se é fato que qualquer falante do português percebe a normalidade brasileira da variante tipo, “estou falando” em contraste com a normalidade lusitana em contraste com “estou a falar”, é fato também que, em geral, supõe-se ser esta última a forma mais antiga. A despeito de ser historicamente o contrário, essa suposição no imaginário cultural brasileiro se reflete na construção de personagens lusitanos seiscentistas e setecentistas em produções cinematográficas e televisivas de época sempre com suas caracterizações de linguagem optando por “estou a falar” como marca original portuguesa. Esse pressuposto de que qualquer diferença entre o português europeu e brasileiro teriam necessariamente uma origem em mudança no Brasil carrega em si, ainda que tacitamente, a noção de que o idioma pertenceria a Portugal e se nos teria sido outorgado, mas sem se perder a posse real. Em relação a isso, Celso Cunha dizia:

Aplicando um raciocínio de Amado Alonso43 e Angel Rosenblat44, podemos dizer que dos portugueses dos séculos XVI e XVII uma parte ficou em Portugal e outra se foi para longes terras, entre elas as receptivas terras da América. Logo, os portugueses que nos cederam o idioma foram os que para cá se transportaram. Teriam os colonizadores perdido a propriedade da língua por se haverem expatriado? (CUNHA: 1976, p. 42-43)[2]

Acreditar ser a língua portuguesa propriedade portuguesa é um componente do quadro simbólico sobre a própria língua que se foi construindo no Brasil por vários vetores, tendo encontrado, na escola, um grande catalisador. Nesse sentido, podemos identificar mito cooperante na ideia-base de uma primazia das formas lusas como referência para diversas regras da gramática normativa escolar no Brasil. Isso foi tão profundamente estabelecido que já mereceu de Celso Cunha questionamento contundente: “Será admissível a hipótese de que Portugal nos cedeu a utilização do idioma e, por isso, dele deve ter para sempre o controle normativo?" (CUNHA: 1976, p. 42). São mitos muito fortemente construídos e difundidos no ensino de gramática com fins exclusivamente prescritivos na escola.

Contudo, quando nos voltamos para o exame de obras gramaticais escolares no Brasil ao longo do tempo, desde o último quartel do século XIX até a década de 80, fase esta em que o ensino prescritivo ainda predominava no universo escolar brasileiro de modo quase categórico, percebemos que existem fases distintas de posturas muito, pouco ou nada descritivas dos autores de gramáticas normativas escolares. Se por um lado existe pleno conhecimento de que a própria natureza das gramáticas escolares de todas as fases definia seu objetivo compartilhado de promoção de um padrão culto da língua referenciado em obras literárias, no entanto, por outro, não se tem muito bem sabido se o caráter descritivo de estruturas da escrita tida como padrão, literária ou não literária, foi diferenciado em qualidade técnica e apuro de fase a fase em sessenta ou setenta anos de prática pedagógica nas escolas Brasileiras.

Nesse sentido, sempre se estará fadado a confundir a tradição gramatical descritivo-normativa no Brasil com a gramática tradicional escolar que se configura após ser fixada a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), fixação terminológica que acaba por restringir sobremaneira o componente descritivo conjunto ao normativo. Evidente que é verificada a convivência dessa tensão pendular ora mais descritivo-normativo, ora exclusivamente normativo nas gramáticas escolares desde sempre. Contudo, parece claro haver os períodos de maiores concentrações de posturas. Dessa realidade diferenciada, foram construídos elementos simbólicos e criados diferentes concepções de norma padrão no alunado ao longo da história escolar brasileira. Investigar um leque variado e controlado historicamente de obras gramaticais escolares é a base de uma recuperação dessas abstrações de norma a partir do contato com a normatização na escola.

Um limite real é, de acordo com nosso recorte temporal, termos acesso unicamente às obras em si e a anotações de aula de raros cadernos que resistiram ao tempo, esquecidos nos acervos públicos e privados. Não temos acesso ao que houve em sala de aula em 1896. Como foram trabalhados os exercícios de memorização de regras e depois articulados com as estruturas dos textos das seletas. Se olhamos para os paradigmas verbais e lemos os objetivos expostos nos programas escolares de trabalho de recitação em sala, evidente que a memorização estava na base das estratégias. Mas como podemos afirmar que tudo era uma decoreba se não temos acesso, observando somente o escrito nos manuais, à prática como um todo do feito em sala de aula. Seria realmente razoável supor que não teria havido nenhum caráter de trabalho que criasse competências e habilidades como efeito conjunto ao ensino de um padrão escolar culto escrito não vernáculo, ainda que os objetivos programáticos estivessem longe dos parâmetros de Competências e Habilidades hoje concebidos na Escola? Todas as pessoas que, na escola, foram se tornando redatores eficientes e leitores competentes em entender o que liam eram fruto apenas de um bom ambiente linguístico familiar? Isso não parece razoável quando pensamos nas diversas pessoas de origem familiar não letrada que atingiram grau alto de letramento na escola tradicional ao longo do século XX. Os processos de aprendizagem devem ter sido mais complexos e variados do que a simples decoreba de paradigmas e grafias que o olhar exclusivo sobre os livros escolares antigos pode sugerir.

Dentro do limite real de não ser possível contar com testemunhos diretos de alunos de 90 anos para trás, o desafio metodológico é cruzar informações de diferentes fontes primárias escritas com as diferentes formas de se tratar o ensino de gramática cotejando gramáticas de diferentes tendências usadas nas escolas. Contudo, enquanto houver pessoas vivas que conheceram outras realidades de ensino diferentes do tempo presente, há a possibilidade de tomar seus testemunhos como fontes primárias dessa história do trabalho com língua portuguesa e da construção dos elementos simbólicos da norma culta ao longo da história. Um informante centenário pode nos fornecer dados de sua adolescência ou infância, ou seja, do ensino de 1930? Um informante hoje com 80 anos pode relatar memórias do ensino de da década de 50 do século XX? Mas, qual a diferença entre simples lembranças do passado gravadas e um corpus de testemunhos com qualidade de fontes primárias? Esse desafio metodológico pode, talvez, começar a ser enfrentado com a abordagem metodológica conhecida na Historiografia e Etnografia como Memória Oral. Este artigo apresenta nossas primeiras reflexões e experiências no enfrentamento desse desafio para uma sócio-história do ensino de língua portuguesa no Brasil.

2. História Oral e a Pesquisa Historiográfica.

Em nossas vidas carregamos experiências, princípios, valores, saberes e sensações que são selecionadas e guardadas pela nossa memória e foi com essa ideia que o livro “Memória Social” foi redigido. Esse desafio foi assumido pelo SENAC São Paulo e pelo Museu da Pessoa no início de 2007. Na soma de suas experiências, as duas instituições criaram uma parceria para a formação de lideranças comunitárias na metodologia de histórias de vida, no propósito de que possam construir, socializar e organizar suas histórias. Portanto, foi dessa maneira que surgiu o Projeto Memória Social.

A pesquisa da “História Oral e práticas de ensino de Língua Portuguesa” busca reconstituir não apenas por meio de que estratégias foi difundida a norma subjetiva das gramáticas escolares tradicionais no Brasil, ao longo do século XX, mas também examinar atividades conjuntas a elas no processo de ensino e aprendizado (talvez atividades colaterais, coordenadas; talvez coadjuvantes ou complementares) que habilitavam e capacitavam o alunado para competências conforme o contexto sociocultural do período sob estudo. Se isso pode ser feito a partir da reunião de fontes primárias do trabalho com a norma padrão encontrado nos livros, muito só pode ser reconstruído a partir de informações para além dos manuais escolares. Muito da prática escolar não foi registrado em papel. Só pode ser recuperada por meio das memórias orais dos atores que estiveram em sala de aula.

A questão que se impõe é o como recuperar a prática do ensino gramatical que não está presente nas gramáticas de sincronias passadas e como saber, por exemplo, o que era considerado erro grave dentro dos modelos idealizados de norma padrão entre as décadas de 30 a 60 do século XX. Como acessar a voz dos que foram estudantes no século XX para que possam fornecer memórias organizadas em verdadeiros corpora para a pesquisa de conteúdos, valores e concepções construídos em torno da normatização escolar, e não apenas obter um conjunto de relatos gravados.

Vale destacar que não há muitos trabalhos que façam uso da História Oral na área de Letras, mas alguns se destacam. É o caso da tese de Baumgartner (2009), em que se investigam época e local diferentes dos desta pesquisa. Na tese, são coletadas, com a articulação entre História Oral e recolha de fontes livrescas, informações sobre as práticas de ensino nas quatro últimas séries do Ensino de 1º Grau, na disciplina de Língua Portuguesa. Sua pesquisa, de cunho qualitativo, em uma perspectiva sócio-histórica, busca recuperar os “fios constitutivos da história da disciplina de Língua Portuguesa”, como ela mesma nomeia, lançando mão de fontes documentais escritas e as fontes orais levantadas em entrevistas com ex-professores e de ex-alunos. Outro trabalho que articula História Oral e pesquisa em Letras é o de Menegolo, Cardoso & Menegolo (2006), que reflete sobre os procedimentos metodológicos da História Oral para reconstituir o que foi o ensino de Produção textual escrita no período de 1990-2000, nas 4ª séries do Ensino Fundamental de uma escola em Cuiabá, Mato Grosso, comparando o prescrito pelos documentos oficiais e o relatado nos testemunhos orais.

As fontes orais, usadas amplamente na Antiguidade Clássica para a construção da História, perdem lugar no século XIX e são deixadas à margem da historiografia oficial, voltando a ganhar espaço somente na segunda metade do século XX. Até 1880, século XIX, na França, a história era conduzida sem uma metodologia específica, ligada à política e atrelada aos eruditos tradicionais, que eram contrários à República. Mas com o início da III República (1870), as novas elites republicanas buscaram afastar a História da utilização política dos conservadores e promoveram sua profissionalização, fixando uma série de regras para o Método Histórico: a objetividade, a visão retrospectiva – que instaurou o tempo passado como fonte oficial de história–, o sistemático estudo de textos, análises quantitativas, a neutralidade dos fatos e a imparcialidade do pesquisador. Ferreira (2002) mostra que a história era encaminhada de um lado pelos especialistas do ensino superior, que se concentravam na prática científica, privilegiando o método histórico e de outro pelos amadores, que afastados da possibilidade de trabalhar com o passado, por não dominarem o método histórico e toda erudição exigida, se dedicaram à história contemporânea.

O desprezo dos historiadores universitários pela história recente explica também o porquê da desqualificação dos testemunhos diretos. Esse campo dos estudos históricos acabou se transformando em monopólio dos historiadores amadores. (FERREIRA, 2002:316)

O método histórico e a objetividade por ele garantida foram postos em debate na virada do século, pois se questionava que “o recuo no tempo não garantia a objetividade da história, pois que todo historiador é tributário de sua época” (FERREIRA, 2002:317). Assim, o século XX inaugura o que ficou conhecida como “Nova história”, com historiadores que contestaram as ideias positivistas e instauraram uma nova concepção de história, que contra o predomínio da história política, deu destaque para o econômico e o social.

Apesar dessa nova perspectiva e importantes transformações, as ideias como a valorização das estruturas duráveis, processos de longa duração e a exclusão da análise individual, defendidas pela Nova História, fizeram prevalecer na Historiografia o foco no tempo passado e nas fontes escritas, reafirmando a marginalidade dos depoimentos pessoais, que foram “acusados” de serem subjetivos e incapazes de dar conta da totalidade da história.

Ferreira (2002) mostra que somente a partir da década de 1980 houve mudanças essenciais para abrir caminho para os estudos historiográficos do século XX e a história contemporânea:

Revalorizou-se a análise qualitativa e resgatou-se a importância das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. (FERREIRA, 2002:319)

Os debates sobre as relações entre passado e presente proporcionaram maior entendimento sobre o passado, memória, e história. Assim, derrubando o argumento de que os tempos eram estanques e isolados, a teoria e método histórico se modificam, fazendo brotar o interesse pela memória, que une passado e presente com maestria. A valorização da memória enquanto fonte produtora de história foi ganhando espaço e restituiu o valor das fontes orais, tratando seus traços de subjetividade como modo de ampliar a percepção sobre os fatos, gerando outras versões da história.

Com o surgimento do gravador, os depoimentos orais adquiriram o estatuto de documento, já que podiam ser registrados, catalogados e ser fonte de consultas posteriores. Segundo Ferreira (2002), a coleta de depoimentos com o gravador teve início em 1940 com o jornalista Allan Nevins, que documentou a atuação dos grupos dominantes norte-americanos e deu origem ao programa Columbia Oral History Office.[3] A partir daí, surgiram muitos outros e, nos anos 60 houve um boom da história oral, que antes dedicada ao estudo das elites, passou a valorizar os anônimos e “tirar do esquecimento o que a história oral sufocara durante tanto tempo” (FERREIRA, 2002: 322)

Essa mudança na perspectiva histórica é essencial para o entendimento da questão específica desse trabalho, no sentido de que os dados não podem ser recolhidos de maneira aleatória e descontextualizada. A metodologia historiográfica construída na História Oral foi o caminho para enveredarmos na busca de um método eficiente para nosso objeto de pesquisa.

Dentre as definições da área de pesquisa historiográfica História Oral, interessa mostrar uma das mais básicas “História Oral é um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da experiência humana” (FREITAS, 2002:18).

Esses outros procedimentos que Meihy (2005) destaca não são técnicas rígidas de como coletar e fabricar entrevistas, mas se refere às especificidades do método História Oral, que mais que registrar informações, tem o compromisso de produzir conhecimento sobre a experiência humana e transformá-lo em documento:

História oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto e que continuam com a definição de um grupo de pessoas a ser entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações; transcrição; conferência da fita com o texto; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, publicação dos resultados.  (MEIHY, 2005:17)

Por essa definição de Meihy (2005) torna-se evidente que a história oral não pode ser realizada sem uma preparação antecipada e premeditada, visto que essa é uma das características mais marcantes desse método: a intencionalidade. A pesquisa executada por nossa equipe entre 2013 e 2014, teve por objeto a própria adaptação da metodologia da História Oral aos objetivos específicos de nossa investigação sobre a norma e normatização linguísticas. Na verdade, diante dos cuidados de preparação e de articulação do projeto, tornaram-se objetos específicos da etapa atual de nossa pesquisa a própria maneira de abordar os entrevistados, a própria escolha do tipo de entrevista com colaboradores da terceira idade e, centralmente, a própria elaboração, testagem e aprimoramento de um roteiro de entrevistas.

3. Metodologias para a História do Ensino de Língua Portuguesa: roteiros de entrevistas pela História Oral.

Inspirados na experiência do já mencionado Museu da Pessoa, na fase incipiente de investigação, constituímos corpora memoriais com gravações de vídeos ou somente áudio de depoimentos de adultos na terceira idade sobre as aulas de língua e literatura que tiveram quando eram crianças ou adolescentes. Na fase inicial de construção metodológica, ainda não foi empreendido controle por diferentes faixas etárias, origem regional ou segmento social. Nosso único controle de grupo separa os entrevistados entre os que estiveram na sala de aula como alunos ou como professores. Buscávamos o que era combatido, de forma direta ou indireta, o que era comum (geral) na época, portanto sem perseguição prescritiva. Dessa maneira, entremeada às memórias sobre o comportamento em sala conseguimos chegar a relatos tanto sobre aspectos da norma que a pessoa recebia na sala de aula, quanto aos valores simbólicos gerais apreendidos pela população escolar à época, provavelmente os mesmos valores simbólicos referenciados no português europeu, passados e reforçados nos meios de comunicação.

Idealmente, separaríamos o perfil dos nossos entrevistados a pessoas da terceira idade discriminando se a formação foi universitária, de nível médio ou primário. No princípio, sem controle de formação, testamos a finalidade/dificuldade de os entrevistados se lembrarem de como a norma prescritiva era passada, quais as regras e como eram assimiladas quando estavam numa faixa etária entre 11 e 18 anos. Para chegarmos a isso, a estratégia inicial foi a da comparação entre o nível médio/primário de suas épocas e a educação em geral do tempo presente. Nessa fase propedêutica de reflexão metodológica para a construção de uma metodologia própria, nossa primeira dificuldade foi pensar que perguntas seriam adequadas sem que influenciássemos os informantes a darem determinadas respostas. Uma delas foi tentar evitar ao máximo perguntas com o “como”, em geral respondidas com circunstâncias simplificadas, como "bem", "mal", "alegre", etc.

As próprias estratégias de abordagem dos entrevistados teve lugar nessa fase de experimentos primeiros. Por exemplo, tivemos de nos preocupar de ir ao encontro dos informantes com roupas consideradas “neutras” por esperar que nossos hábitos, a princípio, diferem geracionalmente. Algo que vale ressaltar é o fato de os entrevistados terem tido grande preocupação com o que vestir na entrevista. Os dois informantes homens foram com roupas bem formais, tendo um deles usado terno para a entrevista. A preocupação com a roupa, ainda que mais despojada, para um evento especial foi geral. Interessante que, ainda sobre o aspecto aparência, tivemos dificuldade com as mulheres, pois, algumas, ternamente vaidosas, se sentiram incomodadas com as marcas do envelhecimento, não querendo ser filmadas.

O primeiro material foi feito com gravação digital de imagem e som (para ver a reação, grau de veracidade, movimentação, expressão de cansaço etc.) sem nenhuma conversa prévia do assunto (duas senhoras) e utilizamos o roteiro básico. Posteriormente, aplicamos um segundo encaminhamento metodológico, testando a eficiência de uma pré-entrevista, ou seja, conversamos com os futuros entrevistados sobre aspectos bem gerais de nossa pesquisa, para posteriormente fazermos a entrevista com a gravação digital. Nesse encaminhamento, observamos que os informantes se recordaram melhor da sua vida escolar quando perguntávamos se havia alguma diferença entre o ensino que eles tiveram e o dos seus filhos e netos. Com isso, passamos a incluir esse comentário em nosso roteiro.

Após as discussões sobre o encaminhamento das entrevistas e aplicação do primeiro modelo do roteiro na fase piloto, chegou-se a um novo modelo de roteiro com perguntas para serem usadas nas entrevistas. Este modelo é composto por uma breve ficha para coleta de informações pessoais, seguida de quinze perguntas, divididas em três caminhos de condução:

Roteiro para entrevista

-Nome Completo:

-Data de nascimento:

-Escolaridade (Instituições onde estudou):

-Profissão:

-Local de nascimento / Lugares onde viveu e por quanto tempo:

I)            TRÊS CAMINHOS DE ABORDAGEM

1) Estratégia: encaminhamento geral.

1Gostaria de saber um pouco da sua história, de algo marcante que a senhor (a) se lembre da sua infância ou adolescência.

(Se não for suficiente, perguntar:

2Algum fato curioso com a senhora ?;

Ou ainda, perguntar sobre:

3Como foi a criação dos seus filhos, muito diferente do que é hoje?

èDepois mudar o foco da pessoa para a escola:

4 Gostaria de saber um pouco sobre sua escola (nome) na época em que o senhor (a) estudou lá (ambiente escolar).

2) Estratégia: comparação entre épocas.

 5Na sua opinião, existem diferenças muito grandes entre o trabalho feito pelos professores sala de aula na sua época, na sua infância ou na sua adolescência e o trabalho feito hoje em dia, ou o que foi feito na época em que os seus filhos estudaram?

3) Estratégia: abordagem direta.

6Que lembrança o senhor (a) tem das aulas? Eram boas? Motivadoras? O (a) senhor (a) gostava?

7 Na sua escola, como eram o comportamento dos alunos?

8Como era o contato entre os professores e alunos nessa época?

9O (a) senhor (a) se lembra de algum caso engraçado, algum aluno que perturbava? O que o professor fazia, como ele agia?

II)          Questões encaminhativas para retomada de turno(Não necessariamente nesta ordem).

10Havia livros didáticos naquela época? Todo mundo tinha o seu próprio livro ou se utilizava mais o caderno?

11Estudava-se muito em grupos?

12Como eram as aulas de língua? O (a) senhor (a) se lembra de como eram dadas as aulas de língua portuguesa? Era muito baseado na gramática, no estudo da literatura, na redação?

13 Os professores costumavam corrigir, recorrentemente, que tipos de erros dos alunos? (O que era considerado erro grave à época? O que era sempre corrigido quando o aluno falava ou escrevia?)

14Usava-se muito o quadro-negro?

15Havia ditados com frequência?

Obs.: Nunca se esquecer de perguntar se possui livros, cadernos, folhas avulsas de exercícios ou se sabe quem tenha.

Esses caminhos de condução preveem estratégias para provocar respostas mais desenvolvidas. São elas:

(1)Encaminhamento geral: tem o objetivo de ativar a memória afetiva do entrevistado por meio de lembranças emotivas sobre sua vida pessoal;

(2)Comparação entre épocas: tem o intuito de estimular memórias por meio da tarefa de comparação entre práticas/situações escolares do tempo do entrevistado de da atualidade ou do tempo de vida escolas de seus filhos;

(3)Abordagem direta: é composta por perguntas direcionadas a temática da entrevista, que neste caso é o cotidiano ou mesmo o conteúdo escolares;

(4)Encaminhamento de questões para retomada de turno: tem o objetivo tanto de recuperar o foco da entrevista caso o informante parta para outras temáticas, quanto para introduzir questões ainda não levantadas.

Para testar a eficácia do roteiro de acordo com nosso objetivo, foram realizadas cinco entrevistas, gravadas em áudio e vídeo. Nelas, os caminhos de condução foram testados, a forma de abordagem e também cada pergunta isoladamente. Uma avaliação foi realizada para detectar o que funcionou ou não nas entrevistas, no sentido de provocar uma desenvoltura mínima no fluxo de memórias do entrevistado.

Na fase-piloto de investigação, testando um segundo modelo de roteiro, mantivemos a faixa etária como o único critério para seleção dos entrevistados, pessoas da terceira idade com o mínimo de 70 anos, não sendo ainda considerado sexo, região ou classe social. Dessa forma, os colaboradores foram selecionados e a eles era informado apenas o tema “Tempos de escola” – em que eles deviam rememorar sua experiência escolar – mas não explicando o tema completo da pesquisa, tentando, inicialmente, não deixar transparecer para o informante, nosso objeto específico de pesquisa. Com isso, buscava-se não só evitar bloqueios em relação à transmissão de conteúdos escolares, mas também evitar que os entrevistados se sentissem tensos por uma suposta obrigação de se monitorarem linguisticamente. Risco real caso soubessem, de antemão, que o tema era a "língua padrão escolar", antes mesmo de serem alvos de nossas estratégias de condução.

Para avaliar a eficácia do roteiro, cada gravação das entrevistas foi ouvida e as respostas analisadas para cada uma das 15 perguntas, conforme seguinte marcação:

a) Funcionou – para perguntas que geraram boa desenvoltura nas respostas; b) Não funcionou – para perguntas que geraram respostas curtas, pouco desenvolvidas;

c) Não se aplica – para perguntas que não foram feitas, independente do motivo, que foi analisado posteriormente.

Os resultados foram organizados na seguinte tabela e os entrevistados aparecem identificados pelas iniciais de seus nomes: LR, SB, AC, ZV, LN.

Tabela 1- Eficiência das perguntas: Funcionou (F - azul) / Não funcionou (N - vermelho) / Não se aplica (NA - amarelo)

O questionário, composto por 15 perguntas e aplicado aos cinco colaboradores, resultou em 75 perguntas, das quais 45 funcionaram, 15 não foram aplicadas e 15 não funcionaram. Em geral, o resultado foi positivo, no entanto foi importante repensar os contextos em que as perguntas não produtivas ocorreram, a fim de descobrir falhas e aprimorar o roteiro, as estratégias gerais de abordagem e o controle prévio do perfil dos entrevistados.

Inicialmente, chama à atenção a quantidade de “Não se aplica” que predomina na parte superior da tabela, que é correspondente à estratégia “Encaminhamento geral”. As perguntas 2, 3 e 4 não foram aplicadas a todos os quatro entrevistados, exceto à última. Notou-se que essas perguntas se tornaram inoperantes, pois os colaboradores já sabendo o tema da entrevista, por condição de aceite, automaticamente começavam a falar sobre a vida escolar. Mesmo com aqueles que não apresentaram essa condição, o tema não pode deixar de ser informado no início da conversa, pois sem essa informação as pessoas se apresentaram muito inseguras para participar. Assim, em alguns casos, não é necessária a mudança de foco do pessoal para o escolar, indicada no roteiro. Caberá ao entrevistador guiar a entrevista, percebendo quais opções tornam a entrevista mais confortável e produtiva.

Outro destaque são as perguntas que não funcionaram, que prevalecem na parte inferior da tabela, equivalendo às “questões encaminhativas para retomada de turno”. Essas questões, por serem mais objetivas, geraram respostas igualmente objetivas e curtas, sem muito desenvolvimento. A partir desse resultado, a solução encontrada foi a elaboração de perguntas mais detalhadas, aumentando as chances de identificação dos entrevistados e ampliando as possibilidades de respostas.

A pergunta 11, por exemplo, “Estudava-se muito em grupo?” passou a ser pormenorizada de acordo com a sensibilidade do entrevistador para a situação ad hoc: "Era comum vocês estudarem ou fazerem pesquisa em grupo? Para alguma matéria, vocês tinham que se reunir para resolver questões ou trabalho de casa?”. Além disso, diversificaram-se as expressões para uma mesma ideia, já que se notou nas entrevistas que cada pessoa se identificava ou mesmo só entendia o sentido da pergunta quando ouvia uma expressão mais usada em sua experiência escolar. Ouvir "Português", "Língua Portuguesa", "Primeiras letras", "Linguagens", "Gramática", "Comunicação e Expressão" na referência ao trabalho com língua portuguesa fez diferença na compreensão da pergunta e desenvoltura da resposta.

Outra implicação da análise foi a necessidade de colocar no roteiro a motivação das perguntas, para que futuros entrevistadores não percam o foco do objetivo da pergunta, como aconteceu na fase de testes do roteiro. Um exemplo é a pergunta de número 9 - “O (a) senhor (a) se lembra de algum caso engraçado, algum aluno que perturbava? O que o professor fazia, como ele agia?”, em que a pesquisadora perguntou somente sobre os alunos que perturbavam e obteve uma resposta curta e longe do que se pretendia evocar.

Além disso, ficou claro que a entrevistada S.B obteve a maior quantidade de “Não funcionou”, fato que também mereceu atenção. Perguntas como a 5, 6 e 7 funcionaram para todos os entrevistados, mas não para essa senhora. Com isso, surgiu a hipótese de que a timidez de S.B ou mesmo sua aparente baixa autoestima quanto à formação escolar tenham influenciado na desenvoltura ao responder. Assim, a partir desse caso contextualizado no resultado geral da tabela, tanto a possibilidade de os perfis dos entrevistados interferirem no sucesso de algumas perguntas, quanto o fato de perguntas funcionarem independentemente dos perfis, foi criada uma avaliação interna de perfis a ser resgatado durante a análise das entrevistas. Caso se decida por uma entrevista de recontato com o informante, os dados da avaliação interna serão tomados para estabelecimentos de estratégias específicas de evocação de memórias.

Além de contribuir para a reformulação do roteiro, as entrevistas realizadas nessa fase piloto já resultaram em algumas memórias interessantes sobre a prática de ensino. Uma delas é a da senhora L.R, 84 anos. Quando questionada sobre a prática da redação no seu tempo de escola, ela respondeu:

A redação era assim, ou em livrinhos ou em estampas. Ela botava aquele quadro assim (...) aqueles carneirinhos, e nós fazíamos a redação por ali. Olhava né, e lia.  (Dona L.R, 84 anos)

 Lia, de historinhas, tinha a biblioteca, a gente fazia tipo redação. Lia e depois a gente falava da leitura que fez. (Dona L.R, 84 anos)

É possível a inferência de uma redação construída a partir da atividade com oralidade, que de acordo com a entrevistada, era feita a partir do acompanhamento de estampas, imagens sequenciadas para motivar a criação, leitura do texto e subsequente produção de texto escrito. Essa informação sobre redação a partir de estampas, que não constava em nosso roteiro, passou a integrá-lo, para que pudéssemos descobrir se a prática era restrita ou mais amplamente utilizada. Assim, em uma entrevista posterior, descobrimos outra memória sobre essa prática: “Agora, quando era descrição, que vinha uma estampa pra gente escrever” (Dona A.B, 92 anos), revelando que se para AB o procedimento estava vinculado a apenas tipo textual específico, a descrição, para a informante L.R, sua aplicação recaía em outro modo de produção textual: a narração.

Interessante notar que o uso de figuras, cenas desenhadas (estampas) na motivação/estruturação das redações parece ter sido prática escolar comum a realidades sociais diferentes, visto que as colaboradoras L.R e A.B estudaram em colégios voltados para diferentes regiões que, à altura, identificavam claramente diferentes seguimentos sociais: Baixada Fluminense e Zona Sul carioca (Bairro Botafogo).

Outra senhora, Dona L.N, 82 anos, destaca a importância rítmica da pontuação, o que pode ser comprovado na investigação de gramáticas antigas:

É, não lê mais em voz alta, por quê?! Às vezes não respeita sinais, não respeita a entonação de voz, não respeita assim a pontuação. Tem que ver isso tudo, pontuação, a entonação de voz. Lá na minha época isso aí cobravam, (ininteligível), eles faziam questão que a gente obedecesse lá a pontuação." (Dona L.N, 82 anos)

Diante das constantes percepções sobre as particularidades das entrevistas e sobre seus modos de condução, acreditamos que os métodos em projetos de História Oral precisam ser constantemente revistos, atualizados. Acrescentar novas informações ao roteiro, detectando novas estratégias e diferenciando abordagens, é condição para uma eficiente aplicação metodológica. Além disso, o entrevistador precisa estar preparado para diversas situações e diferenciadas pessoas, já que não há uma receita pronta a que se possa seguir em se tratando de pessoas e de suas memórias.

4. Palavras finais.

Os resultados da etapa de investigação aqui retratada apontam para um filão de pesquisa a ser mais explorado do que tem sido na área de Letras: a História Oral. As fontes primárias construídas a partir da própria memória dos informantes e as fontes secundárias construídas pelas inferências e cruzamentos de informações empreendidos pelos pesquisadores contribuirão para cobrir lacunas de informações e de conjecturas que as pesquisas com fontes escritas podem cobrir. O roteiro de entrevista aqui construído para recuperar aspectos da construção da norma/normatização linguística no Brasil serve de base para criação ou aprimoramento de novos roteiros tanto dentro dessa temática, quanto para outras na história do ensino de língua portuguesa.

5. Referências Bibliográficas.

  • ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3ª ed. Rio de janeiro. FGV Editora, 2005.
  • ARAÚJO, Osmar Ribeiro de. Modos de leitura de alfabetizadoras: história, memória e representação. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2005.
  • BAUMGÄRTNER, Carmen Teresinha. Aspectos constitutivos da história do ensino de língua portuguesa no Oeste do Paraná (1960-1979). 2009. 516f. Tese (Doutorado em estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
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  • FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial (Lingua[gem]; 25), 2008.
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[1]
Por exemplo, os corpora de gravações espontâneas feitos na década de 70/80 pelo projeto Norma Urbana Culta (Projeto NURC).

[2] As notas originais 43 e 44, na citação de Celso Cunha, remetem, respectivamente, a "Castellano, español, idioma nacional. Buenos Aires, Instituto de Filologia, 1938, pp. 175-177" e à "Obra cit., pp. 55-56", redirecionamento esse que não conduz a referência bibliográfica alguma. É possível que se trate de "El castellano de Espanha y el castellano de América. Unidade y diferenciación. Caracas, Instituto de Filología ' Andres Bello' , 1962, p. 53", presente na nota 41.

[3]Sediado na Universidade Columbia, em Nova York - EUA