Ano 8 - Nº 8 - 1/2014

Apontamentos para a Construção de uma História do Ensino de Língua Portuguesa como L1 no Brasil

Resumo

Este texto discute a visão etnocêntrica da Coroa portuguesa em relação à população autóctone da colônia. Trata-se de uma breve discussão em torno da substituição da língua geral falada na colônia pelaLíngua Portuguesa e sua gramática acoplada às culturalmente prestigiosas aulas de latim. Procura descrever que a descaracterização da língua geral na sociedade colonial da época e as ações pelo Português imantadas, entre outros fatores, pela concepção iluminista presente na legislação pombalina.

Palavras-chave: Civilização. Língua geral, o português do Brasilno século 18. Legislação pombalina.

Abstract

This text discusses the ethnocentric view of the Portuguese Crown in relation to the native population of the Brazilian Colony in late 18th Century. The paper encloses a brief discussion of the need then felt to replace the local Tupi Language (called General Language) by the Portuguese Language and its prestigious grammar apart from the Latin classes.  The goal here was to describe the statute of the General Language in the colonial society and the policies approved in favor of the Portuguese Language inspired by the illuminist conception of nation contained in Marquis of Pombal’s laws.

Key words: Civilization. Creole languages. General language. Brazilian Portuguese language in the eighteenth century.  Pombal’s laws.

Introdução

Em relação ao ensino da língua portuguesa, existem silêncios, esquecimentos e lacunas que valeria a pena pesquisar. Certamente haverá ganhos se os pesquisadores investirem suas energias na construção da história ainda inédita do ensino de língua portuguesa como L1. Este artigo faz o levantamento inicial de alguns pontos que são fundamentais à construção dessa história. Porém, é bom salientar que o enfoque dado aos parágrafos que seguem, tende a privilegiar uma análise antropológica da referida temática. Por conseguinte, o foco de nossa análise recai na ideia de que dentro da legislação pombalina, o conceito de civilização é o elemento que descaracteriza a língua geral falada na colônia até Pombal. Entendendo-a como inferior, sem identidade, bárbara e rústica a percepção era a de que essa língua autóctone associada aos descendentes de tupis de ampla comunicação deveria ser substituída pela língua europeia do colonizador português civilizado.

A estrutura do texto está dividida nas seguintes seções: (i) uma visão da língua geral versus a língua portuguesa, e (ii) a revelação do ideal de civilização presente na legislação pombalina. Para realizar essa discussão, retomo estudos já realizados sobre a substituição da língua geral pela língua portuguesa, procurando, no entanto, dar visibilidade à visão  etnocêntrica europeia subjacente  a esse acontecimento. (iii) uma seção em que faço um  inventário de alguns acontecimentos que sucederam após a implantação da legislação pombalina, na qual analiso um trecho dessa legislação, procurando demonstrar a visão etnocêntrica que anima a lei; e (vi) algumas considerações finais do estudo bibliográfico.

1. Língua geral versus Gramática da Língua portuguesa

A legislação pombalina sobre o ensino da língua portuguesa talvez seja o primeiro registro formal da história do ensino da língua colonial de Portugal no então Brasil Colônia. Dentre as leis que constam da legislação o “Alvará de 30 de setembro de 1770” é o mais enfático a esse respeito. Esse Alvará tornou obrigatório o ensino da gramática da língua portuguesa nas aulas de Latim, substituindo a gramática de ensino baseada na língua tupi, escrita por José de Anchieta ainda no final da primeira metade do século XVI[1].

O Alvará acima mencionado e um alvará anterior de 28 de junho de 1759 foram uma resposta da elite dirigente da Coroa, motivada por questões econômicas e culturais, através do famoso Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal entre 1750 a 1777, que fechou as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as colônias expulsando seus mantenedores, os padres jesuítas.

Na chegada dos religiosos da Companhia de Jesus ao Brasil, em março de 1549 juntamente com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, havia na colônia e em toda sua extensão uma grande diversidade de línguas, sendo que o tupi tornou-se gradualmente a língua de intercomunicação entre jesuítas e indígenas. Para subordinar as populações autóctones da colônia aos objetivos da metrópole, assim como para alcançar converter as populações ao cristianismo com o fim de auferir ganhos econômicos e religiosos, os jesuítas encontraram no domínio da língua indígena o seu maior aliado.

Porém, os padres foram bastante comedidos com relação à língua tupi (ou Tupinambá, como era conhecida essa variante na costa paulista. Apenas Anchieta, entre os religiosos, foi reconhecido como tendo conhecimento cabal da língua tupi. Por isso, para se comunicar os padres contavam muitas vezes com os serviços dos “línguas” (BARROS, 1995). Os línguas eram geralmente europeus deixados no Brasil a viver com os índios para servirem depois como intérpretes das línguas locais.

Talvez em função da dificuldade de comunicação entre os jesuítas e as populações locais foi que Anchieta escreveu a primeira gramática de língua autóctone brasileira, a Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil, escrita entre 1553 e 1555 (CORDEIRO, 2009) e publicada décadas depois em Coimbra em 1591. Conforme cita a referida autora, há referências em Houaiss (1985) de que a gramática de Anchieta serviu como uma metodologia inovadora de ensino da língua tupi entre a população branca lusa.

A atitude de Portugal em relação à metodologia praticada do ensino da língua tupi na Colônia reflete uma preocupação com a estreita ligação entre língua e domínio econômico e cultural do império, entre língua e espaço português.

Culturalmente, a legislação pombalina estava imbuída da ideia de evolução, progresso, ordem e outras mais que representavam os ideais do iluminismo. Esses ideais se baseavam numa lei de estágios pela qual toda sociedade passaria de primitiva ou selvagem a civilizada. Assim, as populações autóctones são instruídas na religião cristã, aprendem profissões, estabelecem formas de convívio através do comércio, trabalho e casamento, tendo como pano de fundo a ideia de que tais populações eram selvagens ou primitivas. Para os colonizadores, havia a urgência de torná-las civilizadas.

Sendo assim, a metodologia de ensino de língua dos jesuítas deveria ser substituída, principalmente no que diz respeito à língua geral. Esta deveria ser substituída por uma língua com identidade, com história e imbuída de tradição. Dessa forma, a imposição da língua portuguesa foi uma questão fundamental para Portugal, pois sendo uma língua de tradição de história, levaria civilização aos povos da colônia, preservando-a em termos culturais.

2. O ideal de civilização presente na legislação pombalina

Economicamente a legislação pombalina foi uma resposta ao descontentamento da elite comercial da colônia em relação aos privilégios dado pela Coroa portuguesa aos jesuítas: mão-de-obra não remunerada, isenção de taxas e impostos na produção e na venda daquilo que era produzido nas missões, acumulação de grandes propriedades e monopólio da educação, com a criação de uma grande quantidade de colégios. Com a legislação as perdas econômicas, os comerciantes e coroa puderam reparar suas perdas, pois, sendo expulsos, os jesuítas perderam os ganhos econômicos adquiridos com a evangelização: colégios, terras, ganhos com as vendas dos produtos originados das missões.

Neste sentido, se é válida a análise de alguns estudos[2]sobre a metodologia de ensino da língua dos jesuítas, como por exemplo, há estudo que descreve o ensino do catecismo romano, da cartilha, das orações, cantos e outros tipos de materiais didáticos através da língua tupi, bem como a criação de outras gramáticas na língua indígena. E que todas essas experiências interculturais e linguísticas de ensino e de aprendizagem que atravessaram XVI e XVIII teriam sido interrompidas com a expulsão dos jesuítas a partir da proibição do uso da língua geral pela legislação pombalina.  Se for válida essa forma de pensar, é válido considerar também que os jesuítas não valorizavam a língua tupi por amor e respeito às populações da colônia. A Valorização da língua geral era imprescindível aos religiosos, eis que era única forma de comunicação entre colonizadores e autóctones.

De todo modo, a legislação pombalina cria outro ambiente com a imposição do ao ensino da língua portuguesa. Esta estava restrita aos documentos oficiais, que eram comunicados à população através da língua geral. As autoridades portuguesas desconheciam a língua tupi, por isso, recorriam constantemente aos padres versados na língua dos índios para que pudessem se comunicar. Este fato, entre outros já mencionados, levou a Coroa portuguesa, via legislação pombalina a tomar uma atitude definitiva no sentido de implantar a língua portuguesa de uma vez por toda na colônia.

Após implantação da legislação pombalina, pode-se dizer que há um consenso nos textos acadêmicos que versam sobre a história do ensino da língua portuguesa no Brasil, esse consenso diz respeito sobre alguns acontecimentos que se sucederam e que poderiam ser objetos de estudos, vejamos alguns mais discutidos:

  •                     Torna-se obrigatório o ensino da Gramática da Língua Portuguesa nas aulas de latim, ou seja, adotou-se o uso do português no ensino do latim;
  •                     Criação das aulas régias ou avulsas;
  •                     Tentativa de forjar um sentimento de nacionalidade por meio da língua;
  •                     O método de ensino teve por base a memorização;
  •                     Importação de materiais didáticos, principalmente, as gramáticas;
  •                     O resultado da implantação da legislação pombalina do ensino no Brasil foi que a educação brasileira ficou praticamente reduzida a nada porque o sistema jesuítico foi desmantelado e nada que pudesse chegar próximo dele foi organizado para dar continuidade a um trabalho de educação.
  •                     Etnocentrismo em relação à língua geral falada na colônia.

Cada um dos acontecimentos supra, mereceria um tratamento estudo bem minucioso, no entanto, faremos uma breve discussão a respeito do ultimo acontecimento. A discussão procurará demonstrar que os indígenas enquanto portadores de um idioma foram considerados como seres primitivos, havendo assim a necessidade de levar-lhes a civilização. Os trechos abaixo dão testemunhas do preconceito da Coroa portuguesa em relação à população autóctone que habitava a colônia. (ROSÁRIO, 1995, p. 27-58):

Sempre foi máxima inalterável, praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles a língua do príncipe que os conquistou se lhes radica também o afeto e a veneração e obediência ao mesmo príncipe. Observando, pois, todas as nações polidas do mundo este prudente e sólido sistema nesta conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidavam os primeiros conquistadores, estabelecer nele o uso da língua que chamavam geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica, para que, privados os índios de todos aqueles meios que só podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição em que até agora se conservavam. Para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos diretores estabelecer, nas suas respectivas povoações, o uso da língua portuguesa, não consentindo, por modo algum, que os meninos e meninas que pertencerem às escolas e todos aqueles índios que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas nações, ou da chamada geral, mas unicamente da portuguesa, na forma que Sua Majestade tem recomendado, em repetidas ordens, que até agora se não observaram, com total ruína espiritual e temporal do Estado.

O trecho acima consta na lei do Diretório, publicado, em 1757. O Diretório pode ser entendido como um documento jurídico que tinha por finalidade regulamentar as ações colonizadoras em terras portuguesas. O texto expressa por si só a carga de etnocentrismo imposta aos indígenas, as expressões “povos rústicos e bárbaros” e “língua abominável e diabólica” atestam esse fato. 

A língua geral deveria ser substituída por uma língua com identidade, com história e imbuída de tradição, a língua do príncipe.  Língua esta do civilizado que deveria ser ensinada às crianças e aos índios para as pudessem sair do estado em que se encontravam, a barbárie. Sendo assim, ao povo polido caberia a tarefa de civilizar os povos rústicos e bárbaros.

Pode-se dizer que a tônica do processo de colonização por meio da língua foi o conceito de civilização. Tal conceito expressa os valores que o povo português tem de si mesmo (bons costumes, polidez, aptidão, verdade, língua verdadeira), implica uma intenção educadora, pois objetiva a transformação do outro (inaptidão, rusticidade, ignorância), reconhecido como o mesmo, e não como diferente.  A língua do príncipe aludida no trecho citado que desencadeou um processo de civilização objetivada numa enérgica ação pedagógica com vistas às mudanças, e só pode ser entendida de forma autoritária, em relações assimétricas de poder.

Considerações finais

O texto procurou demonstrar que havia uma língua geral na colônia e que a comunicação entre os colonizadores e as populações locais se dava essencialmente por meio dessa língua.  Procurou demonstrar que a população autóctone servia apenas como meio de obter ganhos econômicos tanto por parte dos jesuítas quanto parte da Coroa portuguesa.

Procurou demonstrar também que no plano cultural, os indígenas foram considerados como seres que não estavam inseridos na roda da história, careciam de civilização, portanto, era necessário civilizá-los, sendo a língua portuguesa o instrumento ideal de civilização.

Trata-se de um trabalho incipiente com vistas a um maior aprofundamento, principalmente, nos acontecimentos tidos como relevantes após a implantação da legislação pombalina.

Referências

  • ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: UnB, 1997.
  • BARROS, Maria Cândida D.M. Os línguas e a Gramática Tupi na Brasil (século XVI). Ameríndia, Paris, v. 19/20.
  • CORDEIRO, Samara. Gramáticas e o Ensino de Línguas Portuguesa e Autótocnes no Brasil Colônia. Revista Helb. ano  3. – nº 3 – 1- 2009.
  • DAHER, Andréa. Escrita e Conversão: a gramática tupi e os catecismos bilíngües no Brasil do século XVI. Revista Brasileira de Educação, nº 8, mai/jun/jul/ago, 1998.
  • DIRECTORIO, que se deve observar nas povoaçoens dos índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não mandar o contrario. Lisboa, na Officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentissimo Senhor Cardial Patriarca, M.DCC. LVIII
  • FAVERO, Leonor, L. A política linguística na América Latina Colonial e as Línguas Gerais. Trabalho apresentado em evento promovido pela PUC/ São Paulo. Disponível na Página dessa mesma universidade. Acesso em 15 de novembro 2011.
  • HOUASSIS, Antônio. O português no Brasil: pequena enciclopédia da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Unibrade, 1985.
  • ROSÁRIO, Manuel da Penha do. Língua e inquisição no Brasil de Pombal: 1773. Introdução e notas de José Pereira da Silva. Prefácio de Ruy Magalhães de Araújo. Rio de Janeiro: Eduerj, 1995.


 

[1]           Samara Cordeiro descreve que a gramática de Anchieta servia de lembrete para a transmissão e leitura em voz alta entre catequistas e catecúmenos, tanto da faixa tupi-guarani, quanto da portuguesa, que se constituíam em seus usuários, facilitando a intercomunicação dos autóctones com os portugueses, e descendentes de ambos os lados. O método bilíngue permitia a conservação das línguas em contato, o que possibilitava que cada um soubesse sua própria língua, e mais, a língua geral, com que se comunicava com os outros, fossem portugueses ou nativos. C.f. Revista Helb, Ano 3, Nº 3 – 1/2009.

[2]           C.f. DAHER, Andréa. Escrita e Conversão: a gramática tupi e os catecismos bilíngües no Brasil do século XVI. Revista Brasileira de Educação, nº 8, mai/jun/jul/ago, 1998.