Ano 5 - Nº 5 - 1/2011

2. Reflexões sobre a Habilidade de Leitura no Ensino de Língua Estrangeira: O Que Dizem os Documentos Governamentais?

Resumo:
O presente estudo tem como objetivo a construção de uma revisão analítica dos documentos governamentais que orientam o ensino em língua estrangeira (LE) no Brasil. Para tal, à luz da abordagem sociocultural (CASSANY, 2006), pretendeu-se compreender o papel da leitura como meio de expansão do conhecimento, da construção da identidade e de criticidade do sujeito, veiculado por documentos posteriores à LDBEN (BRASIL, 1996). Portanto, ao retomar este percurso, conclui-se que estes se complementaram e esclareceram determinadas orientações teóricas que se encontravam ambíguas nos textos anteriores, avançando quanto a uma proposta direcionada a formar indivíduos plurais, críticos e éticos em LE.

Palavras-chave: Documentos governamentais. Ensino de línguas. Leitura. Letramento(s).

Abstract:
This study focused on building ananalytical review of government documents that guide the teaching of foreign language (FL) in Brazil. To this end,in light of the sociocultural approach (CASSANY, 2006), we aimed to understand the role of reading as a means of expanding knowledge, the construction of identity and criticality of the subject, represented by the documents after the LDBEN (BRAZIL, 1996). So getting back to this route, it is concluded that these were complemented and clarified certain theoretical orientations that were ambiguous in previous texts, as advancing a proposal directed to form plural subjects, critical and ethical LE.

Keywords: Government documents. Language teaching. Reading. Literacy.

1       Considerações iniciais

Neste estudo, objetivamos traçar um breve panorama de como se desenvolve a abordagem de trabalho em torno da leitura em língua estrangeira (LE) nos documentos governamentais. Desse modo, nossa investigação parte de um olhar sob a orientação da perspectiva sociocultural da linguagem, já que entendemos que as práticas de leitura e, consequentemente, de escrita são construções sociais às quais cada época e cada circunstância histórica confere sentidos (BAKHTIN, 2000; FERREIRO, 2000).Compreendemos, portanto, e coadunamos com a postura de Cassany (2006: 10) ao defender, que o ponto inicial, nesse sentido, é compreender que ler e escrever não são somente tarefas linguísticas ou processos biológicos, mas práticas socioculturais sociohistoricamente contextualizadas (BARTON, D; HAMILTON, M.; IVANIC, R., 2005). Concebendo, dessa forma, “pensar em leitura é pensar em pluralidade, heterogeneidade, sem perder de vista as particularidades que envolvem o processo de ler” (LEURQUIN, 2001: 14), dissociando-se a ideia de leitura como algo individual, estanque, fechado em si mesmo, ou de que a sua compreensão possa ter o texto como elemento unívoco detentor do conhecimento, no entanto esta leitura deve configurar-se, “assim, como uma das atividades básicas, porque o homem interage com o outro a partir de textos e, nesse processo, aciona diversas habilidades e competências” (Idem: 28) dentro de um contexto sociohistórico e ideológico situado (BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, 2005; ROJO, 2004).

Pelas razões até aqui expostas cabe-nos ressaltar que investigar a forma como é concebida a perspectiva de ensino de leitura em LE nos documentos em tela nos faz, enquanto docentes e pesquisadores, refletir e discutir sobre quais concepções de leitura e orientações nos são fornecidas. Uma vez que estas podem ser pautadas em torno da concepção linguística (leitura das linhas, leitura como decodificação), da concepção psicolinguística (leitura entrelinhas, leitura como interação), da concepção sociocultural (leitura por detrás das linhas, leitura crítica)[1] ou, segundo Abreu (2011) da leitura apenas para aferição de conhecimento metalinguísticos.

Logo, os corpora utilizadospara este estudo tomam como ponto de partida a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, BRASIL, 1996) e, em seguida, os documentos que nascem como orientações para o ensino (Parâmetros Curriculares Nacionais, BRASIL, 1998; Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, BRASIL, 2000; Parâmetros Curriculares Nacionais +, BRASIL, 2002; Parâmetros Curriculares Nacionais em debate, BRASIL, 2004; e as Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio, BRASIL, 2006)[2], uma vez que a partir da LDBEN (Brasil, 1996) se tentou reformular e atualizar determinadas posturas de ensino propondo o texto como instrumento de trabalho. Somando-se, por conseguinte, a proposta da atividade de leitura como um elo formador de atitudes, conhecimentos e valores, tanto em língua materna (LM) como em língua estrangeira (LE); transpassando o nível da tradução, do conhecimento gramatical ou até mesmo da leitura enquanto decodificação ao entender a língua como um fim em si mesma (bases estruturalista da linguagem de acordo com Coracini (2005). Tal escolha de recorte, ressaltamos, emerge de um cenário de modificações.

2       Novos caminhos na educação brasileira

Notamos, então, que a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, BRASIL, 1996) foi um marco na educação brasileira ao programar mudanças significativas quanto aos direcionamentos institucionais; aos objetivos de cada nível de formação escolar; ao enfatizar a formação da cidadania, do indivíduo crítico e da autonomia; bem como ao formalizar um currículo de base comum em nível nacional para a educação básica.

Deste modo, uma dessas modificações, ponto fundamental para esta pesquisa, foi a retomada do status do ensino de língua estrangeira moderna (inglês, espanhol, francês, italiano, etc.), que até então era tido como atividade complementar e sem relevância na construção da identidade do aprendiz. Logo, a LDB tenta recuperar a importância da LE como disciplina de formação cidadã[3] dos sujeitos. Além de galgar espaço referente à sua oferta no ensino fundamental e no ensino médio, pautados nos artigos 26 e 36 da lei, por exemplo. Mas, por se tratar de uma lei e ser concisa e objetiva nos seus propósitos, tornou-se necessário lançar documentos que complementassem ou orientassem melhor as ações educativas propostas.

Assim, em 1998, surgiram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), fruto de discussões entre os diversos setores da comunidade acadêmica e da sociedade. Já em sua primeira publicação, as suas áreas de estudo tinham como objetivo trabalhar conjuntamente por temas geradores para recorrer à formação cidadã[4]. Mais especificamente, nos PCN de língua estrangeira (doravante LE) para o ensino fundamental (BRASIL, 1998), encontravam-se os primeiros direcionamentos a um trabalho sociointeracional da leitura e da aprendizagem para a cidadania em busca de uma “consciência crítica em relação à linguagem” (1998: 15), ou seja, de um engajamento discursivo. Aliás, a expressão “engajamento discursivo” perpassará todos os documentos até as Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio (OCNEM, BRASIL, 2006) como sinônimo “de autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão” (PCN, BRASIL, 1998: 15) nas práticas sociais diversas. Logo, os PCN sugerem um ensino de LE que capacite o aprendiz a agir no mundopor meio de seu próprio discurso de forma consciente e crítica, sendo a habilidade de leitura um elo possível para esta prática.

Para que isso ocorra, nos PCN-LE (BRASIL, 1998)[5] defende-se a função social da linguagem, cuja ênfase no contexto escolar deve estar na possibilidade de tornar o conteúdo significativo e de relevância em uma dada atividade. Já que “o estudo repetitivo de palavras e estruturas apenas resultará no desinteresse do aluno em relação à língua”, pois é retirada deste aluno “a oportunidade de arriscar-se a interpretá-la e a utilizá-la em suas funções de comunicação” (IDEM, 1998: 54). Portanto, as práticas de leitura em LE não devem ser apenas um pretexto para aferir regras gramaticais, mas devem ter sentido e engajamento por parte dos envolvidos.

Notamos que as observações contidas nos PCN-LE (IDEM, 1998) já nos sinalizam, de igual modo, para a necessidade de se traçar um diagnóstico dos conhecimentos que os alunos possuem, pois ao refletir sobre as práticas de leitura e de escrita que se tem contato no cotidiano o aprendiz traz consigo conhecimentos e experiências que auxiliarão no processo de ensino e aprendizagem da LE (ABREU, 2011).

No entanto, segundo Rodrigues (2011) e Virmond (2004), as bases deste documento possuem lacunas no embasamento teórico principalmente na compreensão da linguagem, pois a minimiza a uma perspectiva puramente funcional e instrumental, priorizando a função da competência discursiva.

Por conseguinte, o próximo documento publicado e voltado especificamente ao ensino médio (EM) surge em 2000: os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM). Duas palavras possuem destaque em tal documento: contextualização e interdisciplinaridade nas abordagens de ensino. Ou seja, o conteúdo a ser explorado no EM deve estar sempre situado, localizado, ganhando significado nas suas práticas e buscando relações, pontes possíveis, com outras áreas do saber. O documento sugere ainda a construção de cidadania; uma reformulação do currículo; novas formas de aprendizagem do conteúdo, por meio de competências e habilidades; e, consequentemente, uma revisão na postura tradicional de ensino, não se limitando a um conhecimento memorístico ou conteudístico da língua.

Sendo assim, os PCNEM (BRASIL, 2000) consolidam uma divisão em três áreas de aprendizagem que não se excluem, segundo a perspectiva da interdisciplinaridade: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Logo, o intuito é superar “o tratamento estanque, compartimentalizado, que caracteriza o conhecimento escolar” (IDEM, 2000: 21) e avançar no sentido de não pautar seu ensino somente para as provas de acesso ao ensino superior.

Sobre o ensino de línguas, ressaltamos que é possível depreender pela leitura dos PCNEM (BRASIL, 2000), que a aquisição e o uso de uma língua estrangeira moderna são um meio de aproximação de culturas e elo possível de integração em um mundo globalizado.

Nessa linha do pensamento, deixa de ter sentido o ensino de línguas que objetiva apenas o conhecimento metalinguístico e o domínio consciente de regras gramaticais que permitem, quando muito, alcançar resultados puramente medianos em exames escritos. Esse tipo de ensino, que acaba por tornar-se uma simples repetição, ano após ano, dos mesmos conteúdos, cede lugar, na perspectiva atual, a uma modalidade de curso que tem como princípio geral levar o aluno a comunicar-se de maneira adequada em diferentes situações da vida cotidiana [...] (Idem – LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS, 2000: 26)

Contudo é possível encontrar de igual modo nos PCNEM (idem, 2000) alguns problemas de ordem teórica, pois suas bases teórico-metodológicas não se encontram suficientemente explicitadas, incorrendo em problemas passíveis de críticas por documentos posteriores. Por exemplo: embora o documento faça menção ao uso de um texto real, em seu contexto de produção, na sua diversidade, aproximando-se da teoria dos gêneros textuais, o texto ainda é visto à luzdos gêneros escolares (dissertação, narração e descrição). Outro ponto é exaltar o enfoque comunicativo do ensino de LE, delimitando-o ao simples fato de se comunicar, falar. Ou seja, não se explora mais claramente a sugestão de um trabalho comunicativo na tentativa de desenvolver as competências sociolinguística, discursiva, estratégica e gramatical[6], relacionando-as ao desenvolvimento de capacidades críticas e cognitivas do aluno.

Assim, enfatizamos em relação a esse último ponto, que de acordo com a visão comunicativa a língua é compreendida como instrumento de comunicação, o ensino se centra no ato de fala e a aprendizagem enfatiza funções comunicativas dentro de quatro grandes habilidades: ler, escrever, ouvir e falar (MARÍN; LOBATO, 1988: 57). Desse modo, o objetivo principal de tal proposta é a aquisição por parte do aluno da capacidade de usar a língua para se comunicar de forma efetiva (ABADÍA, 2004: 690). No entanto, consonante com Fernández e Kanashiro (2006), entendemos que o enfoque comunicativo dá margens para ampliar a mera comunicação em si. Ela possibilita a articulação de ideias, do raciocínio crítico, na construção e na produção de sentidos. Conseguimos, então, visualizar uma sinalização de uma perspectiva construtivista ao entender que a aprendizagem de LE se dá por intermédio da interação com o outro em determinados contextos, e de uma abordagem discursiva, compreendendo que em todo uso da linguagem existem intencionalidades por parte de quem a produz (PCNEM, BRASIL, 2000). Porém essas perspectivas nesse documento deveriam ser mais bem exploradas, tentativa feita, em nosso entendimento, nos últimos documentos: PCN em debate e OCNEM[7].

Ainda, no percurso cronológico das publicações, surge em 2002, os Parâmetros Curriculares Nacionais + do Ensino Médio. Este documento busca esclarecer o que se entendia por competências e habilidades[8] propostas no PCNEM (BRASIL, 2000) e ampliam-se as discussões no sentido de compreender a dinâmica escolar do ensino médio (EM).

Logo, tal documento reafirma a necessidade da responsabilidade de uma educação de qualidade: “isso significa preparar para a vida, qualificar para a cidadania e capacitar para o aprendizado permanente, seja no eventual prosseguimento dos estudos, seja no mundo do trabalho” (Idem, 2002: 8). Em conformidade com tal concepção, procura-se entender a aprendizagem nos pilares propostos pela UNESCO (Organização das Nações Unidas): aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver; e aprender a ser, pois: “[...] são saberes cuja conquista ultrapassa a mera aquisição de informação, uma vez que abarcam a formação humana e social do indivíduo [...]” (Idem, 2002: 23).

Reiteramos, portanto, que os PCN+ (Idem, 2002), assumem que a partir do texto podemos compreender a linguagem e a sua produção de significados que são situados sociohistoricamente no tempo e no espaço. Esse documento nos leva a refletir sobre as formas de linguagens verbais e não verbais presentes no ato comunicativo, com ênfase nos textos de circulação da Internet e nas leituras possíveis dentro desse ambiente. Deparamo-nos, assim, com uma perspectiva de atribuição e construção de significados em uma abordagem comunicativa em LE, pois:

Pela leitura concretiza-se a principal razão do ato de linguagem, que é a produção de sentido. Aprender a ler de modo amplo e em vários níveis é aprender a comunicar-se, é valer-se do texto em língua estrangeira para conhecer a realidade e também para aprender a língua que, em última instância, estrutura simbolicamente essa realidade, conformando visões de mundo. (Idem, 2002: 107).

Esses são alguns passos importantes ao reconhecer na leitura a viabilidade para o ensino de LE, auxiliando na constituição do sujeito, além de ter o objeto textual como recorte da realidade cultural do outro. Mas observamos nos PCN+ (Idem, 2002) que a leitura ainda pode ser entendida como aplicação de estratégias de leitura e como consequência disso, uma avaliação da aplicação dessas estratégias em skimming, scanning, prediction (Idem, 2002: 97). Logo, enfatizamos que a leitura e o ato de interpretar ultrapassam a aplicação de estratégias; não inferiorizamos a sua aplicação, pois essa é essencial para o manejo com o texto, apenas consideramos que a leitura em LE pode e deve ir além da compreensão textual. Uma vez que ao ultrapassar esse limite textual criamos a possibilidade de entender as relações que não são neutras, entendendo o contexto de produção e recepção de onde esses textos circulam (ABREU, 2011; CASSANY, 2006). Ainda nos PCN+ (BRASIL, 2002), a metodologia sugerida aos professores de LE indica três frentes: a estrutura linguística, a aquisição de repertório vocabular, a leitura e a interpretação de textos: “[...] É, pois, a partir do texto e de sua leitura e interpretação que se propõe a seleção de conteúdos gramaticais e de vocabulário a serem desenvolvidos no ensino médio” (Idem, 2002: 103). Ao postular tais ações, mais uma vez, refletimos sobre a necessária contextualização do texto, não o concebendo como objeto estável, de sentido único e cujo trabalho se limite ao léxico ou à gramática (perspectiva linguística da leitura). Mas que o conjunto de todas essas habilidades tenha uma funcionalidade, um sentido.

Assim, o próximo documento publicado, PCN em debate (BRASIL, 2004), sugere que o texto não deve ser tratado somente como pretexto seguindo uma abordagem tradicional de ensino[9]. Desse modo, as reflexões contidas neste documento visam a aprofundar o processo de ensino e de aprendizagem de acordo com uma abordagem crítica, relacionando as práticas de leitura e escrita conjuntamente à proposta do letramento ou eventos de letramentos. Haja vista estarmos envoltos em ações cotidianas de produção e recepção de textos orais e escritos.

O documento destaca ainda os dados de exames como o SAEB, ENEM e o PISA, pois estes revelam que os níveis de leitura ou de desenvolvimento da capacidade leitora dos alunos do EM ainda são superficiais, não chegando ao nível de uma compreensão crítica. Portanto, faz-se necesário urgentemente mudar posturas de ensino estreitamente compartimentalizadas e relacionadas ao ensino de uma gramática descontextualizada, uma vez que “[...] o trabalho integrado com linguagens, suportes, textos, discursos e línguas, variados e inter-relacionados, indicados nas DCNEM[10] é não só desejável, mas necessário” (Idem, 2004: 25).

Evidenciamos que os PCN em debate (Idem, 2004) tornam-se um documento preparador para as OCNEM, já que o objetivo principal no ensino de LE é o “envolvimento na construção de sentido” (Idem, 2004: 46). Para isso, aquele documento redireciona o papel do ensino e aprendizagem de uma LE com o intuito de construir ou fomentar o desenvolvimento da autonomia no aluno que o permita buscar o protagonismo como cidadão, ético e responsável, resultado de um processo contínuo de interpretação e de agir no mundo.

Pressupõe-se, assim neste documento, que no EM o uso da linguagem em LE deva ser pautado nas habilidades de compreensão e produção escrita e oral. Entretanto, o próprio PCNem debate (Idem, 2004) sinaliza a realidade educacional brasileira, com condições de trabalho inapropriadas para a confluência das quatro habilidades (ler, escrever, ouvir e falar): sala de aulas numerosas, carga horária com número de horas/aula reduzidas, professores com níveis de proficiência variados, esses poucos exemplos afetando diretamente o ensino de LE.

Dessa forma, soma-se ao documento a reflexão de desmistificar a crença de que só se chega a uma experiência significativa do uso e da aprendizagem de LE levando em consideração as quatro habilidades. Com isso, nos PCNem debate (Idem, 2004) propõe-se devido ao contexto de cada escola, a possibilidade de “envolvimento do aluno na construção do significado via leitura ou em práticas de letramento centradas no trabalho em sala de aula com o texto escrito” (Idem, 2004: 48). A leitura, dessa forma, passa a ter papel crucial neste processo complexo e multifacetado da linguagem, levando ao desenvolvimento “para outras formas de sociabilidade do conhecimento” e possibilitando a formação do sujeito.

Logo, em 2006, por meio da publicação das Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio (OCNEM, BRASIL), consolidam-se alguns posicionamentos pautados em uma proposta sociocultural e interacionista da leitura no ensino de LE. Destacamos ainda que este documento amplia esta discussão em dois capítulos, um destinado ao ensino de língua estrangeira e outro específico para o ensino da língua espanhola[11].

Portanto, as OCNEM (BRASIL, 2006) surgem como “um instrumento de apoio à reflexão do professor” e dão continuidadeàs transformações propostas nos demais documentos governamentais, já que neste documento há um incentivo com relação ao processo de aprendizagem pautado na formação de cidadania, de ética, de desenvolvimento intelectual, de pensamento crítico, de autonomia, bem como das competências e habilidades do aluno, sem focar única e exclusivamente nos conhecimentos científicos. Logo, o documento em questão retoma e ressalta a proposta de modificar determinadas posturas tradicionais de ensino ou de determinadas abordagens que privilegiam uma ou outra habilidade específica (método gramática-tradução ou método audiovisual no ensino de línguas, por exemplo).

Ressaltamos que no capítulo Conhecimentos de línguas estrangeiras reafirma-se a importância de ensinar uma LE para a constituição e formação do sujeito como forma de inclusão no mundo globalizado. Além de estabelecer que o documento alia-se às teorias sobre a linguagem e as novas tecnologias: letramentos, multiletramentos e multimodalidades, funcionando “como base educacional e epistemológica” (idem, 2006: 113). Durante o período pós LDBEN, até então, não tínhamos de forma transparente as abordagens teóricas acerca da linguagem. Assim, nas OCNEM (idem, 2006) revelam-nos um caminho possível para o tão falado engajamento discursivo proposto nos documentos anteriores. A linguagem é entendida como prática sociocultural contextualizada, na qual o indivíduo interage e se utiliza para isso das mais diversas formas de leitura e de escrita. Deparando-nos com práticas e eventos de letramentos contínuos, que exige agora uma nova postura de ensino para incitar a capacidade crítica dessas relações, já que “a aprendizagem de línguas não visa apenas objetivos instrumentais, mas faz parte da formação integral do aluno” e que “as linguagens [são] constituintes de significados e valores” (idem, 2006: 131), afirmando ser impossível dissociar os diferentes contatos entre culturas.

Em síntese, nas OCNEM (idem, 2006) sugere-se o trabalho com temas geradores (política, economia, educação, aspectos sociais, esportes, lazer e etc.) que objetivem ultrapassar a visão limitadora de ensino de E/LE somente como aquisição de vocabulário ou conhecimentos metalinguísticos. Depreendemos do documento a informação de que o aluno é convidado a constituir-se como sujeito no contato com o outro idioma e que ele pode compreender e interpretar as relações postas em cada situação comunicativa por intermédio da leitura.

3       Considerações finais

Ao compreender o cenário do ensino de línguas no Brasil, consideramos pertinente analisar o seu desenvolvimento, tendo em vista o caráter prescritivo dado por intermédio de leis ou documentos nas ações educativas de uma língua moderna. Portanto, coube-nosrefletir sobre o papel da leitura no ensino de LE em tais documentos, uma vez que se continuarmos incentivando a formação de um sujeito que só treina, que só decora e que se exercita para ser um depósito de informações, mas que não faz uso consciente da linguagem estaremos construindo um sujeito que não será capaz de interpretá-la criticamente. E desse modo, estaremos colaborando para a formação de um sujeito não crítico, não engajado, não transformador de sua realidade.

Logo, se não nos adequarmos e continuarmos explorando a leitura em LE segundo uma concepção linguística, consequentemente, no âmbito do ensino, não compreenderemos a atividade de leitura como um meio de construção identitária, cidadã e crítica do indivíduo.

Assim, objetivamos retomar as principais publicações governamentais após a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), uma vez que inferimos destes documentos a crítica a um ensino de língua cuja base tem um caráter compartimentalizado e enciclopedista.

Logo, nos foi possível perceber no texto da última publicação, as OCNEM (idem, 2006), a tentativa de promover mudanças significativas quanto ao cenário posto até o momento. Pareceu-nos claro, de igual modo, a pretensão de ampliar o engajamento discursivo do aluno do ensino médio e das suas práticas de leitura, produzindo-se uma interrelação possível com as concepções de leitura dentro da abordagem sociocultural, conjuntamente à proposta do letramento e do letramento crítico. Portanto, entendemos e esperamos que essas ações possam trazer implicações na forma de ensinar, de aprender em E/LE.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • RODRIGUES, Francisca Tarciclê Pontes. Concepção de leitura das Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2011.
  • VIRMOND, Sônia Monclaro. Gêneros do discurso - esse obscuro objeto de desejo: contribuição para uma leitura crítica dos PCNS de língua portuguesa. Dissertação (Mestrado – Setor de Ciências, Letras e Artes), Universidade Federaldo Paraná, Curitiba, 2004.


[1]
Esta divisão segue a proposta de Cassany (2006).

[2]Tais documentos acabam por se complementar, pois os últimos seguem esclarecendo determinadas orientações teóricas que se encontravam ambíguas nos textos anteriores e avançam quanto ao amadurecimento de uma proposta direcionada a formar indivíduos plurais, críticos e éticos por intermédio de um engajamento discursivo.

[3]Entende-se como formação cidadã um conjunto de ações possibilitadas no ambiente educacional: o acesso ao conhecimento; a constituição do sujeito (valores e atitudes); o agir e o posicionar-se no mundo de forma consciente e crítica; o contato com outras formas de interação através da linguagem; a oportunidade de debater e de compreender as desigualdades, relações de poder, na sociedade como um todo; entre outros.

[4]Ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural, trabalho e consumo são exemplos desses temas.

[5]Iniciamos nossa discussão pelo PCN – ensino fundamental (1998), devido a fato de este ser o primeiro documento após a LDB que possui uma parte destinada ao ensino de língua estrangeira moderna. Os demais documentos citados neste estudo serão referentes ao ensino médio.

[6]Segundo Abadía (2004: 691), as competências propostas por Canale e Swain (1980), podem ser assim sintetizadas: “[...] a linguística ou gramatical (domínio da gramática e do léxico), a sociolinguística (uso apropriado da língua em contexto social no que tem lugar a comunicação), a discursiva (relação entre os elementos da mensagem e está com o resto do discurso) e a estratégica (domínio de estratégias de comunicação que suprem carências e outras competências)”.

[7]Compreendemos que por se tratar de documentos que orientam as ações educativas, os textos precisam estar bem fundamentados, com bases teóricas mais explícitas.

[8]Existe uma extensa pesquisa em torno das definições e das propostas de tais concepções. Porém este não será o foco da nossa pesquisa.

[9]Lembramos ainda que nos PCN em debate (idem, 2004) tem-se a finalidade de lançar um olhar crítico sobre os documentos já publicados e estabelecer algumas sugestões para formulação de outro texto que oriente a educação brasileira.

[10]Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM), trata-se do documento que fomentou e deu base às modificações debatidas nos textos publicados.

[11]Esta especificidade na escolha do espanhol, justifica-se pela realidade pós publicação da Lei 11.161, de 05 de agosto de 2005, que promulga a oferta do ensino de espanhol na educação básica brasileira. Assim, conforme Abreu (2011), por intermédio desta ação de política linguística (BRASIL, 2006; GONZÁLEZ, 2008), inicia-se um período de impactos no ensino desta língua, não somente relacionadas as OCNEM, como: a sua oferta obrigatória nas escolas da rede pública e privada no ensino médio; a opção da oferta no ensino fundamental II; a necessária e oportuna contratação de profissionais habilitados; a ampliação da oferta da formação desses profissionais; a reflexão sobre o currículo; a autoavaliação sobre o ensino e o material didático utilizado no processo de ensino e aprendizagem; entre outros.