Ano 4 - Nº 4 - 1/2010

1. A Reforma Capanema e a Hegemonia do Ensino de Literatura

Resumo
O presente artigo, por meio de pesquisa analítica documental histórica, apresenta a Gestão Capanema, de 1934 a 1945 e sua sucessão a partir de 1951 bem como suas novas medidas e diretrizes para a Educação Nacional. Ele objetiva refletir sobre os impactos da Reforma Capanema e das medidas que a sucederam no sistema educacional brasileiro. O conteúdo e a metodologia do ensino das literaturas estrangeiras, brasileira e portuguesa foram sistematicamente definidos, assim como suas funções sociais e políticas, as quais ganharam um caráter totalmente explícito.

Palavras-chave: Gestão Capanema; Educação Nacional; Século XX.

ABSTRACT:This paper, through a historical documentary research method, presents the Capanema administration, from 1934 to 1945 and its succession from 1951 on, which took new measures for the National Education. It aims to ponder the impacts of the “Reforma Capanema” and its suceeding actions on the Brazilian educational system. The content and the methodology of the teaching of Brazilian, Portuguese and foreign literatures were systematically defined, as well as its social and political functions, which gained a totally explicit character.

Keywords:Capanema’s Reform; Brazilian Education; 20th Century .

 

1. Introdução

A gestão de Gustavo Capanema, de 1934 a 1945, no Ministério da Educação e Saúde Pública, é considerada pela historiografia educacional brasileira a mais emblemática do período, exatamente por nela terem se institucionalizado políticas pedidas em décadas anteriores em prol de um sistema orgânico de Educação Nacional. É no seu ministério que se acentua o papel político, ideológico e social atribuído à educação, a qual, segundo o seu discurso proferido no centenário do Colégio Pedro II, em dezembro de 1937, deveria “tomar partido”, “adotar uma filosofia e seguir uma tábua de valores”, devendo “reger-se pelo sistema de diretrizes morais, políticas e econômicas que formam a base ideológica da nação” (apud PAVAM, 2007, página?).

2. AGestão Capanema de 1934 a 1942: a Portaria de 17 março de 1936

Em 1936, o ministro, com a Portaria de 17 de março, expediu os programas do curso complementar do ensino secundário que definiram e sistematizaram, pela primeira vez, os conteúdos, os objetivos e a metodologia do ensino da literatura no curso pré-jurídico. Dada a carga horária destinada ao ensino da literatura[2], bem como o papel que lhe foi delegado na “educação espiritual” do aluno, estimulando-lhe “os pendores aproveitáveis”, depreende-se o grande prestígio adquirido por essa disciplina nos novos programas, colocando-a inclusive num lugar hegemônico, uma vez que ela deveria “auxiliar”, na medida em que as circunstâncias permitissem, “o ensino de outras matérias”:

O ensino de literatura no curso complementar deve ter, como principais objetivos, os seguintes:

1 – dar conhecimento aos alunos do que há sido a atividade humana no imenso campo do pensamento, manifestada pelas obras literárias de toda natureza;

2 – preparar e educar o espírito dos alunos para a apreciação inteligente e crítica dos fatos literários;

3 – elevar o nível de cultura literária que o aluno deve trazer do curso fundamental, despertando-lhe o gosto pela boa leitura e estimulando os pendores aproveitáveis que nele porventura se revelem;

4 – auxiliar, na medida que as circunstâncias permitirem, o ensino das outras matérias,  especialmente no tocante às línguas e às ciências sociais (apud BICUDO, 1942, p. 226).

No mesmo documento legal, o legislador deixava bem claro que o estudo não deveria se transformar “em mera decoração de nomes e datas, ou sequências de escolas literárias”, já que o “objetivo geral do ensino” consistia em “habituar os discentes a conhecer e a julgar a atividade intelectual do homem, bem como a prosseguir, mais tarde, na conquista do mais alto grau de cultura geral”, fornecendo-lhes as “bases para a formação do espírito crítico, indispensável àquele julgamento” (BICUDO, 1942, p. 226-227). Como se pode notar, tratava-se de promover, entre o povo, uma total nacionalização da cultura literária, de consolidar o cânone da literatura nacional e de utilizar a literatura como um dos meios de preparar “as individualidades condutoras”, isto é, “os homens” deveriam “animar as responsabilidades maiores dentro da sociedade”, seriam “portadores das concepções e atitudes espirituais” e era “preciso infundir nas massas e tornar habituais entre o povo”[3].

A enumeração de tais objetivos não excluía outros que participassem de “sentido idêntico” e que, dessa forma, se enquadrassem no “espírito geral da cadeira”. Era indispensável, contudo, que se desse “especial relevo” à “leitura de excertos das principais obras, quer colhidos no original, quer em antologias. Assim, na primeira série, determinou-se o estudo de “noções preliminares”, “conceito e significação da literatura ” e do “fato literário”, “suas condições”, “distinção dos gêneros literários” e “literatura geral”, enquanto que, na segunda série, se estudavam as literaturas, portuguesa, brasileira, americanas e européias contemporâneas”(BICUDO, 1942, 226-227).

O ministro ainda determinou a organização, nas bibliotecas, de cada estabelecimento escolar, de “uma secção especialmente consagrada à cadeira de literatura”, para que o aluno pudesse encontrar, “em original, ou em tradução”, as obras cuja leitura lhe fosse útil e “indispensável para a realização dos trabalhos” (BICUDO, 1942, p.227). Assim, na mesma portaria, encontrava-se anexada uma bibliografia mínima que, nas bibliotecas, deveria figurar[4]. Tal medida já revelava uma preocupação de Capanema em relação ao material didático, uma preocupação que, mais tarde, em 1938, culminaria no Decreto n. 1.006, de 30 de dezembro, que estabeleceu as condições de produção, importação e utilização do livro didático, criando a Comissão Nacional do Livro Didático, encarregada de examinar, julgar e autorizar o uso de todos os livros didáticos do ensino primário e secundário. No Capítulo IV do decreto, onde estavam expostas as causas que poderiam “impedir a autorização do livro didático”, fica claro o modo como o livro didático poderia veicular a propaganda do regime que se instalava no país:

Art. 20 - Não poderá ser autorizado o uso do livro didático:

a)    que atente, de qualquer forma, contra a unidade, a independência ou a honra nacional;

b)    que contenha, de modo explícito ou implícito, pregação ideológica ou indicação da violência contra o regime político adotado pela Nação;

c)    que envolva qualquer ofensa ao chefe da Nação, ou às autoridades constituídas, ao Exército, à Marinha, ou às demais instituições nacionais;

d)    que despreze ou escureça as tradições nacionais, ou tente deslustrar as figuras dos que se bateram ou se sacrificaram pela pátria;

e)    que encerre qualquer afirmação ou sugestão, que induza o pessimismo quanto ao poder e ao destino da raça brasileira;

f)     que inspire sentimento da superioridade ou inferioridade do homem de uma região do país, com relação ao das demais regiões;

g)    que incite ódio contra as raças e as nações estrangeiras;

h)    que desperte ou alimente a oposição e a luta entre as classes sociais;

i)      que procure negar ou destruir o sentimento religioso, ou envolva combate a qualquer confissão religiosa;

j)     que atente contra a família, ou pregue, ou insinue contra a indissolubilidade dos vínculos conjugais;

k)   que inspire o desamor à virtude, induza o sentimento da inutilidade ou desnecessidade do esforço individual, ou combata as legítimas prerrogativas da personalidade humana (BICUDO, 1942, p. 119-120).     

3. AGestão Capanema de 1942 a 1951: os Decretos-Lei e as Portarias

A partir de 1942, nos últimos anos do Estado Novo, regime estabelecido pela constituição de 1937, que havia consagrado a ditadura de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema pôs em execução uma série de decretos-lei intitulados Leis Orgânicas do Ensino, que abrangeram vários setores da educação primária e média (OLIVEIRA, 1999, p. 82). O ensino secundário, reformado pelo Decreto-Lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942, como reconheceu Romanelli (2001, p. 159), repercutia, de modo contraditório, as tendências políticas pelas quais passava a sociedade em pleno Estado Novo que exibia, de um lado, os princípios do populismo nacionalista e fascista e, de outro, uma educação classista voltada para a preparação de lideranças. Com efeito, isso se expressa claramente na fala de Capanema, ao expor os motivos da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Secundário:

O que constitui o caráter específico do ensino secundário é a sua função de formar nos adolescentes uma sólida cultura geral e, bem assim, de neles acentuar e elevar a consciência patriótica e a consciência humanística. O ensino secundário deve ser, por isto, um ensino patriótico por excelência, e patriótico no sentido mais alto da palavra, isto é, um ensino capaz de dar ao adolescente a compreensão dos problemas e das necessidades, da missão e dos ideais da nação, e bem assim dos perigos que a yacompanhem, cerquem ou ameacem, um ensino capaz, além disso, de criar, no espírito das gerações novas, a consciência da responsabilidades diante dos valores da pátria, a sua independência, a sua ordem, e seu destino (apud ROMANELLI, 2001, p. 82).

Assim, o Capítulo II do regulamento reestruturou a seriação do currículo dos estudos secundários. O primeiro ciclo, agora chamado ginasial, teve o seu tempo de duração reduzido para quatro anos. O segundo ciclo passou a ser ensinado em três anos e foi subdividido em clássico e científico. Desse modo, com a supressão do pré-jurídico, único curso em que a Literatura se configurava como disciplina, esta passou a fazer parte dos programas das línguas correspondentes. No curso ginasial, português, latim e francês eram ensinadas da primeira à quarta série e o inglês da segunda à quarta. Já no curso clássico estudavam-se português, latim grego e francês da primeira à terceira série, e espanhol e inglês, optativas na primeira e segunda séries. No curso científico, havia o ensino de português da primeira à terceira série, de francês e inglês na primeira e segunda séries, e de espanhol na primeira série.

Ainda em 1942, com a Portaria Ministerial n. 172, de 15 de julho, o ministro expediu as instruções metodológicas para a execução do programa de português do curso ginasial[5]. Aqui, como se depreende do documento, o ensino da literatura ainda possuía um caráter sumário, resumindo-se a breves comentários e considerações sobre os “escritores” e sobre “as figuras mais eminentes das literaturas portuguesas e estrangeiras”, para que o aluno não deixasse “seu aprendizado ginasial” sem saber quem tinham sido “Homero, Demóstenes, Dante, Petrarca, Cervantes, Goethe, Schiller, Tolstoi, Camões, Gil Vicente, Garret, Herculano”; entre outros, e para que pudesse adquirir uma “base à sua educação literária”, se quisesse “ingressar no segundo ciclo”. Ademais, caberia ao professor incutir nos alunos “amor e respeito” à “língua literária”, visto ser esta “a de mais importante papel social e político e, ao mesmo tempo um dos mais fortes fatores do progresso”, “um instrumento de união” e “um patrimônio sagrado da coletividades nacional” (BRASIL, 1952, p. 477).

Somente nos cursos clássico e científico o ensino literário propriamente dito ganhou um caráter mais sistemático. De acordo com a Portaria n. 87, de 23 de janeiro de 1943, que expediu os programas de Português dos cursos clássico e científico; seriam ensinados, na primeira série, “conceito e significação da literatura”, “escolas literárias”, “prosa”, “poesia” e “gêneros literários”. Na segunda série, que seria dedicada às “noções de história da literatura portuguesa”, estudavam-se a “Era medieval”, a “Era clássica”, e a “Era moderna”. As “noções de história da literatura brasileira” seriam dadas, por sua vez, na terceira série, que abrangeria a “Era colonial”, de “Gonçalves Dias” a “José de Alencar”, e a “continuação da Era nacional”, de “Machado de Assis” aos “principais autores atuais” (BRASIL, 1952, p. 487-488).

3. Sucessão do Ministério Capanema

Criticada pela sua “inadequação ao momento nacional”, bem como pela sua “concessão à tradição livresca, ornamental” (NUNES, 1962, p. 114), a reforma do ensino secundário empreendida pelo ministro Capanema teve curto período de vida. Em 1951, seis anos após a queda de Vargas, era emitida a Portaria n. 614, de 10 de maio, assinada pelo ministro Simões Filho, incumbindo a congregação do Colégio Pedro II da “simplificação dos programas das diversas disciplinas do curso secundário”. Em entrevista coletiva à imprensa, o novo ministro explicou os motivos da sua medida:

O objetivo fundamental desse trabalho consistiu, pois, em eliminar dos programas atualmente em vigor os excessos aludidos, reduzindo a totalidade dos conhecimentos alinhados na estruturação das diversas disciplinas, que tornava penosa a tarefa didática. Ao mesmo tempo, verificava-se o flagrante desajustamento desses programas com o nível de assimilação da população escolar, cujas faculdades intelectuais, ainda mal desabrochadas, não a habilitavam a abranger a enorme soma de deveres e atividades de aprendizagem oferecidas ao seu conhecimento (BRASIL, 1952, p. 463).

Com a primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, e a Lei n. 5.692, de 1971, a progressiva incorporação, pelo ensino de segundo grau, da formação profissional, em detrimento da tradicional formação literária ou humanística, tornou a tentativa de Capanema de transformar a literatura em disciplina-tronco do currículo dos estudos secundários incompatível com as novas diretrizes. Desse modo, a literatura, depois de desvincular-se da retórica e alcançar um breve período de hegemonia no currículo, tornou-se mais ou menos subsidiária da língua portuguesa, mantendo-se o seu ensino pautado pela periodização e pela cronologia, a despeito das novas correntes teóricas e metodológicas.

4. Considerações Finais

Se a história das disciplinas escolares demonstra que os grandes objetivos da educação emanam de um modo imperativo da sociedade global, assumindo diferentes fisionomias conforme as épocas, ao se analisar o desenvolvimento do ensino das línguas e de suas respectivas literaturas nos currículos dos estudos secundários fica evidente o modo como ele obedeceu às aspirações políticas e sociais de um governo que procurava, de algum modo, construir a identidade da sociedade brasileira. Foi na gestão de Capanema que as políticas educacionais que vinham sendo pedidas, desde décadas anteriores, em prol de um sistema orgânico de educação nacional, efetivamente se institucionalizaram. Essa educação classista, voltada para a preparação de lideranças e, ao mesmo tempo, orientada pelos princípios do populismo fascista e nacionalista, se concretizou de fato em 1942, com a reorganização do ensino secundário, no qual o ensino da literatura, fazendo parte dos programas das línguas correspondentes, atingiu seu ápice. Aqui, não apenas o conteúdo e a metodologia do ensino das literaturas estrangeiras, brasileira e portuguesa foram sistematicamente definidos, mas também suas funções sociais e políticas, as quais ganharam um caráter totalmente explícito, bem ao gosto, diga-se de passagem, dos interesses oficiais do governo Getulista.

Referências

BICUDO, Joaquim de Campos. 1942. O ensino secundário no Brasil e sua legislação atual. São Paulo: AIFES (Associação de Inspetores Federais de Ensino Secundário).

BRASIL.1952. Ministério da Educação e Saúde. Ensino secundário no Brasil: organização, legislação vigente, programas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. [O Ministério da Educação e Saúde é autor e editor. Por isso, está repetido]

NUNES, Maria Thetis. 1962. Ensino Secundário e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros).

OLIVEIRA, Luiz Eduardo Meneses. 1999. Ahistoriografia brasileira da literatura inglesa: uma história do ensino de inglês no Brasil (1809-1951). Dissertação de Mestrado, Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/>. Acesso em: 31 jul. 2010.

PAVAM, Rosane. 2007. “A educação conveniente”. Revista de Educação. São Paulo: Editora Segmento, n.° 126, ano 11.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. 2001. História da Educação no Brasil. 56. ed. Petrópolis: Editora Vozes.

Notas de Fim

[1] Este artigo é parte dos resultados da pesquisa de Iniciação Científica “O ensino de literatura no Estado Novo: o caso de Sergipe”, desenvolvida em 2007 por João Escobar J. Cardoso e orientada por Luiz Eduardo Oliveira.

[2] As cargas horárias de cada disciplina no curso pré-jurídico eram as seguintes: primeira série – latim (quatro horas por semana), literatura (quatro horas), história da civilização (quatro horas), noções de economia e estatística (quatro horas), biologia geral (três horas), psicologia e lógica (quatro horas); segunda série – latim (seis horas), literatura (seis horas), geografia (três horas), higiene (três horas), sociologia (quatro horas), história da filosofia (quatro horas) (BICUDO, 1942, p. 225).

[3] Palavras de Gustavo Capanema, em entrevista, ao especificar os motivos para a reforma do ensino secundário em 1942 (apud NUNES, 1962, p.113).

[4] Para o estudo de literatura e dos gêneros literários, foram indicadas antologias francesas e inglesas, clássicos gregos (tradução), A Divina Comédia (tradução), Canção de Rolando (comentada), os teatros de Shakespeare, dos franceses, dos espanhóis e os de Ibsen (tradução), romances de Dostoiewsky, Gogol, Turfueneiff, Walter Scott, Dickens e o Fausto de Goethe (tradução), poesia romance e teatro de Victor Hugo e D. Quixote de Cervantes. Para literatura portuguesa, indicaram-se antologias portuguesas, Os Lusíadas (comentado), obras de Garret, Castilho, Herculano, Eça de Queirós, Contos de Fialho de Almeida, Poesias de Augusto Gil e Eugênio Castro. Para literatura brasileira, antologias de autores brasileiros, cartas jesuíticas, obras completas de Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Silva Alvarenga e Álvares de Azevedo, Confederação dos Tamoios, Marília de Dirceu, poesias de Fagundes Varela e Gonçalves dias, romances de José de Alencar, Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães e Alfredo Taunay, Memórias de um Sargento de Milícias, poesias e romances de Machado de Assis e O Ateneu de Raul Pompéia (BICUDO, 1942, p. 227-228).    

[5] Tal programa já havia sido emitido pela portaria n. 170 de 11 de junho de 1942, que expediu os programas das disciplinas de línguas e ciências do curso ginasial.